Àquela hora, Marechal Roberto já estava de pé, na rua. Os braços cruzados e colados na barriga, tamanho o frio que fazia na manhãzinha em que Horácio acordou e saiu do hotel quando os donos do estabelecimento estavam ainda por levantar-se. Era aquele momento da mais distinta claridade, mal acabara a madrugada de varrer seus últimos fiapos de escuridão, e quando mal podemos acreditar que o dia, ao contrário de uma criança recém-nascida, possa estar tão limpo antes que um bom número de pessoas o vejam por vez primeira.
Naquela manhã, porém, vinha o inspetor Horácio acometido de estranho mau-humor, depois de uma noite de sono difícil, e desde que acordara com um estranho pressentimento, trazido por aquela figura magra do Aluizinho que viera, inexplicavelmente postar-se em sua mente, e isso logo após abrir os olhos e recordar-se do sonho que acabara de ter.
O sonho: estavam todos em frente aos escritórios. Alguma coisa de grande estava por acontecer e aguardavam o evento. Alheios a isso, peões fazem um convescote entre as viaturas estacionadas. Murilo está entre eles. Horácio se aproxima, mas a turba dá-lhe as costas. D. Clotilde corre de um lado a outro do pátio, atarefada com os preparativos. Há um pequeno tumulto no calçadão onde ficam os escritórios, Horácio corre até lá, abre caminho no aglomerado de pessoas, no centro está o Dr. Alex, que chora dentro de um grande berço de vime. As pessoas o consolam com pequenas oferendas. Nisso, Horácio sente uma mão pousar no seu ombro, volta-se, é o velho Dr. Aluísio Monteiro. Este faz-lhe um sinal para que o siga, e a alguns metros dali, diante de uma edificação, o Dr. Aluísio ergue, num único puxão para cima, um grande rolo de porta sanfonada, deixando entrever no espaço interior um enorme vazio, escuro e ameaçador. O anfitrião faz, numa mesura, um gesto para que entre. Horácio sente que é mais uma missão que lhe está sendo designada, e, apreensivo, vai entrando.
À medida que entra, vai descobrindo lá dentro uma complicada estrutura de metais brilhantes, mas o ambiente ali não deixa de ser amedrontador. Nisso, há novo corre-corre e todos se precipitam para ver o que está acontecendo. Lutando contra uma inesperada paralisia nos membros inferiores, Horácio consegue enfim abandonar o sinistro galpão, ainda a tempo de ver um sorridente Aluizinho que sai de um dos escritórios e ganha o pátio acenando para todos.
Veste um estranho fato de cauda bifurcada e caminha arrastando pela mão, algo displicente, uma Henriqueta envergonhadamente sorridente. Ela tem o corpo enrijecido como o de uma boneca, e quase rente ao chão. Horácio percebe que ela gira a cabeça de modo a ter o rosto voltado na direção do chão, o que não consegue de todo, de modo que pode ver ali um decoroso sorriso reprimido. Aluizinho tem os cabelos encanecidos e rentes, cortados de escovinha, e nada parece detê-lo. No centro do pátio dá-se o prodígio.
Após girar e girar a boneca com uma das mãos e atirá-la no ar, a grande distância, um Aluizinho ainda mais teatral e cômico perfila-se de pernas juntas, em seguida abre os braços num eixo perpendicular ao tronco, e inclina este, que fica paralelo ao chão. Há um som ensurdecedor vindo não se sabe de onde, e Aluizinho, finalmente, com um simples impulso nas ancas, e mantendo as pernas unidas e rígidas na vertical, eleva-se no ar a partir dessa propulsão traseira, ainda com o torso quebrado e fazendo um ângulo de 90 graus com as pernas. Mantém os braços abertos. É como se fosse ele o próprio avião, as pernas como um comprido trem de pouso, o restante da aeronave se completando na longa cauda bifurcada que permanece dura como se fosse agora de metal, na mesma linha do tronco. Parado no ar por um instante, e tendo ganho altura suficiente, arranca finalmente num vôo reto que vai sumindo no horizonte.
Nesse momento Horácio quer gritar alguma coisa e acorda com um som de engasgue, tossindo, como vítima de um angustiante pô-pô-pô às avessas, de fora para dentro.