Sempre me dei bem com ela, pois descobri que nunca havia sentido esse estado, aquele mais sombrio; talvez conheci aquela solidão mais pontual e por ocasião de alguma viagem solitária, ou um momento específico da vida. E claro, aquela pior, que é a solidão acompanhada. Quem nunca?
Lendo o texto de Nelson Barros – “A Invenção da Solidão”, no jornal A União (8/03/2022), senti o desejo latente de escrever também. O título já estava na minha cadernetinha. Compartilho com as suas ideias.
A vida é mesmo uma ironia. Quando jovens, sonhamos com um teto todo nosso. Queremos a nossa individualidade, intimidade e liberdade para deixar o quarto desarrumado, fugir das obrigações e das ordens dos pais, viver perigosamente, os tais arroubos da juventude. Fiquei sozinha a primeira vez aos 25 anos quando da minha primeira separação. Foi ruim. Mas estava solta pelo mundo e rodeada de amigos e dos momentos etílicos e de rebeldia. Casei muito jovem e, apesar do sofrimento desse momento de ruptura, a separação tinha um lado do prazer e do desconhecido daquele movimento que a vida me apresentava. Tirei proveito. Tinha orgulho em me dizer: “Sozinha e pagando as minhas contas e no comando da minha vida. Nos anos 70, isso era transformador e revolucionário.” O preço também foi bem alto em não querer assumir a minha vulnerabilidade tamanha.
Depois, vi que, passei a maior parte da vida acompanhada. Gostava de estar casada, entregue ao relacionamento. A rotina, o doméstico, e o cotidiano sempre me seduziram. E é engraçado porque, sempre tive muita dificuldade com tudo isso. Mas esse era o desafio. Talvez por isso que, tanto me encantei com o filme de Stephen Daldry – As Horas – e o escolhi para objeto do Doutorado – “A Subjetividade Feminina”. Eu era o próprio Corpus da minha pesquisa, junto com Mrs. Woolf, Mrs. Brown e Mrs Dalloway.
Há dez anos, fiquei viúva. Numa idade esquisita, por entre menopausa, filhos crescidos, e ninho vazio. Tinha uma casa familiar e até um cachorro alheio tinha. Rodeada de todos os sons de um lar: fone trim trim, filhos indo e vindo, campainha tocando, carro, buzina, vassoura passando o pano, diarista cantarolando ou ouvindo o rádio, TV ligada na novela, almoços de família, o jardineiro, barulho de louça sendo lavada, olha a pamonha! Latido de cachorro, miado de gata no cio no telhado, o caminhão do lixo, alguém cantando no chuveiro, eu muitas vezes aborrecida e saindo do tom, o almoço tá na mesa! Tô saindo! À essa hora? Ai que canseira! Tô morta! acabou o gás! O pneu furou! E junto aos sons, o silêncio da intimidade. E o amor incondicional. E isso também é transformador e felicidade.
Nos dois anos em seguida das despedidas, é a hora do luto, do des-arrumar as coisas e criar ferramentas de sobrevivência. Dar colo aos filhos, pedir colo aos filhos. Ter a consciência de que a vida é soberana e um dia por vez. É preciso continuar. Trabalhar. Dormir. Transcender. E até ser feliz de novo. Sozinha primeiro. E depois... a vida é uma porta. E uma janela. Vieram os desafios quase intransponíveis. Quanto trabalho! A aposentadoria e tudo o que ela envolve: burocracia e o novo tempo de ter tempo! Mudança. Reforma. Des-re-arrumar os objetos, o coração, e o fígado. E principalmente o sono. O coração para não bater tão rápido e sossegar. Sossego é preciso!
Aí, quando tudo parece se aquietar, chega um negócio chamado Pandemia. Socorro! E por três anos, me tranquei dentro de um apartamento que eu ainda descobria as suas paredes. Como todo mundo, fiquei longe da vida. Da noite. Dos amigos. Dos hábitos que me tiravam de casa. Só restaram as urgências – a mãe, o pão, e o remédio. Afora o imponderável e as surpresas com a saúde.
Tenho uma excelente convivência com esse estar sozinha. Mas confesso que o silêncio dos sons do cotidiano é forte. Lembra ausência. Solidão. Falta. Sinto falta de tudo da minha vida de antes. Mais da convivência afetiva, E isso inclui também os desentendimentos, as rusgas, os dias mais nebulosos. Hoje tenho a privacidade e individualidade do mundo todo. Sou dona do tempo. Do meu ócio criativo ou mais preguiçoso. Lembro do filme Nossas Noites – um idoso e uma idosa vizinhos – Robert Redford e Jane Fonda, e ela, de tão solitária, resolve convidá-lo para dormir com ela todas as noites – dormir mesmo, de conchinha. E ele, um senhor taciturno, vai com um pijama embrulhado debaixo do braço e escova de dente num saquinho de embrulho para não dar na vista, para lhe fazer companhia com os medos. E os sonhos. Com o tempo, claro, ele vai se transformando e saindo da sua toca de recolhimento, e os dois vão tendo outra coisa que não amizade. Faz tempo que assisti, mas na época, achei uma ideia fantástica!
Só que, não tem por aqui, nenhum Robert Redford para eu convidar para esse sono dos anjos. E lá sigo, me desafiando todos os dias para aprender com os dias. Ou com As Horas!