Não é de hoje, ela é uma das melhores tradutoras do país. Sua mais recente empreitada é nada mais nada menos que a tradução de À procura do tempo perdido, de Proust, ao lado do jornalista Mário Sérgio Conti, para a Companhia das Letras. Essa é a terceira tradução brasileira da célebre obra, após a dos anos 1940, da Editora Livraria do Globo, levada a efeito por grandes escritores nacionais, como Quintana, Drummond, Bandeira e outros mais, e a de 1990, do poeta Fernando Py. O propósito atual é atualizar as traduções anteriores, dando ao texto original uma frescura contemporânea, o que muito contribuirá para
facilitar a leitura da extensa Recherche, geralmente tida como não muito fácil pelos iniciantes. Como quase tudo, as traduções envelhecem e de tempos em tempos precisam mesmo de uma revisão que as rejuvenesça.
Começando a vida profissional como jornalista, Rosa Freire d'Aguiar foi morar e trabalhar em Paris, como correspondente da então prestigiada revista Manchete. Logo adotou a cidade e foi por ela adotada, tal como uma nova Gertrude Stein, assim como aconteceu com outros brasileiros e brasileiras que para lá foram pelos motivos mais diversos, principalmente a necessidade de fugir das perseguições da ditadura militar então vigente. Paris, sempre acolhedora (não sei se continua a sê-lo), abriu os braços para eles todos e a todos, creio, concedeu pão e teto.
Ela conheceu e casou com o economista Celso Furtado e aí provavelmente se iniciaram seus vínculos com a Paraíba, terra natal do marido. Afirmam alguns que Furtado nunca deu muita bola para o chão natal. É possível. Mas com ela tem sido diferente: vez por outra está entre nós, sempre nos enriquecendo culturalmente com sua palavra e ação, sem falar na presença pessoal da mulher marcante, inteligente, cosmopolita e dotada de fulgurante luz própria. Pode-se afirmar que ela, por livre decisão, tornou-se uma espécie de ponte entre Furtado e a Paraíba, principalmente após a partida do companheiro arredio. Agora mesmo, neste novembro de 2023, está vindo lançar na APL seu mais recente livro, Sempre Paris – Crônica de uma cidade, seus escritores e artistas (Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2023), aproveitando para doar à Academia o fardão com que o marido tomou posse na ABL. Um gesto generoso que só a afetiva ligação com a terra paraibana pode explicar. Que haja, portanto, reconhecimento e gratidão da parte de nossas autoridades políticas e culturais, não raro desatentas quanto a delicadezas tais.
O referido livro é uma delícia, em todos os sentidos. Li suas mais de trezentas páginas rapidamente, como faço com as obras sedutoras, cada vez mais raras, infelizmente. Para quem ainda não conhece Paris, é um passeio, uma instrutiva e saborosa flânerie pela metrópole, de mãos dadas com alguém de olhos e sensibilidade bem atentos aos mínimos detalhes da rica paisagem urbana e humana parisiense. Desde a sua chegada no aeroporto de Orly, em setembro de 1973, um dia após o golpe do general Pinochet, no Chile, a autora vai nos contando suas aventuras e aprendizados, como num livro de memórias ou autobiografia. Até ela se tornar “dona” da cidade, uma verdadeira nativa, curiosa e elegante. O leitor vai percebendo que na narrativa existem dois protagonistas que não rivalizam entre si: ela e a velha urbe, capital do mundo. Já para os iniciados em Paris, mesmo que na condição de turistas, é uma agradável oportunidade de retornar à cidade para rever alguns lugares e descobrir outros, numa nova viagem, enfim. Assim é a primeira metade do livro: centrada na autora e no seu entorno.
A segunda metade não é menos instrutiva e saborosa, pois traz uma série de 21 entrevistas que a então jornalista fez com algumas das mais importantes personalidades da época. Só essas ricas conversas valeriam o livro, mas é claro que a primeira parte muito o enriquece, tornando-se mesmo indispensável, na medida em que nos dá acesso à pessoa e ao universo parisiense da autora. Não há um único entrevistado que não valha a leitura. Todos nos ensinam algo e nos põem a refletir, como se as entrevistas tivessem sido feitas ontem, tal é a atualidade que mantêm. Sabemos que uma boa entrevista, seja com quem for, depende tanto das respostas quanto das perguntas. O leitor vai logo constatar que Rosa Freire d'Aguiar fez e faz as perguntas certas, com amplo conhecimento da vida e da obra do(a) entrevistado(a). A que fez, por exemplo, com Raymond Aron foi a derradeira que o pensador concedeu antes de morrer, fato infeliz que terminou por colocar a conversa sob o manto solene da história.
O escritor estadunidense Sinclair Lewis dizia que, ao seu tempo, existiam seis Paris: “a primeira era a dos turistas, limitada aos grandes monumentos, às lojas de luxo, ao teatro de revista libertino; a segunda, a Paris dos estudantes em torno da Sorbonne, ‘muito sisuda e usuária de óculos’; a terceira, a Paris dos falsos artistas, ‘muito literária, bêbada e cheia de teorias’; a quarta Paris era a dos verdadeiros artistas, ‘escondida, ativa e silenciosa’; a Paris cosmopolita, muito mundana, constituía um quinto microcosmo; por fim, destacava-se uma sexta Paris ‘onde não mora ninguém, à exceção de 3 milhões de franceses”. Rosa certamente transitou por estas e descobriu outras Paris por ocasião de sua temporada lá. E tudo isso ela nos entrega, de bandeja, nas páginas de seu livro.
Nesse volume, a tradutora cedeu exclusivo lugar à escritora. É claro que quem traduz também é necessariamente escritor, pois reescreve a obra traduzida. Mas, sabe-se, tradução é uma coisa; outra, bem diferente, acontece quando se escreve e se põe o próprio nome na capa do volume. Esperemos então que a autora, além de continuar traduzindo, nos presenteie com outros trabalhos de sua cativante lavra.
Uma atrevida sugestão para ela: escrever sobre Celso Furtado. Não o economista, mas o homem, sua personalidade, suas opiniões sobre fatos e pessoas (pelo menos, as publicáveis), seu temperamento e, no possível, sua intimidade. Creio que tal obra ajudaria muito a se compreender melhor, para fins acadêmicos ou não, a figura aparentemente sisuda desse brasileiro ilustre. Ninguém melhor do que ela para fazê-lo.
A presença dessa autêntica “cidadã do mundo” entre nós areja a aldeia com uma brisa cosmopolita benfazeja. E que Paris, sim, seja para sempre.