Que maravilha! Tinha em mãos aquilo pelo que tanto lutara: o visto de permanência no País dos seus sonhos. Fora-se, finalmente, o tempo...

O prato quebrado

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Que maravilha! Tinha em mãos aquilo pelo que tanto lutara: o visto de permanência no País dos seus sonhos. Fora-se, finalmente, o tempo da clandestinidade, da fuga da polícia, da exploração em empregos ocasionais com salário duas vezes menor do que o destinado aos ali nascidos.

Quando a coisa ficou muito preta, pensou em voltar para casa, intento, porém, do qual desistiu ao imaginar a zombaria dos amigos de infância e da vizinhança em geral que já não mais aguentavam a história do seu embarque para o estrangeiro, “em busca do sucesso e da grana”, desse modo contada por um pai orgulhoso.
Não, não permitiria tamanha humilhação, nem a si nem aos seus. Morreria por ali mesmo, se fosse o caso.

Mas assim não seria. O visto de permanência e, com ele, o trabalho correto, autorizado, em breve lhe permitiriam a boa sorte e o bem-viver. A terra das oportunidades já lhe sorria. Que bênção!

Documento à mão, não deixou de lembrar dos dias mais duros, ao longo dos quais o insucesso o agoniava tanto quanto a perda iminente daquelas paisagens, daquele clima de quatro estações bem demarcadas: primavera florida, verão ameno, outono com folhas cadentes e inverno com gelo. Ah, a primeira neve, como esquecer dela?

Foi quando o vento norte soprou-lhe, em inglês, os versos e a melodia de “Autumn Leaves”, as folhas outonais que o cancioneiro francês dispôs ao mundo, em 1945, com o título (aqui, aportuguesado) de “Folhas Mortas”.

Antes, lembrava da “Iracema” de Chico e, compreensivelmente, se punha na pele dessa moça, um anagrama de “América”, como querem os entendidos na obra de José de Alencar, autor da trilogia indianista não relacionada, evidentemente, às migrações mal, ou bem-sucedidas.

“Iracema voou para a América/Leva roupa de lã e anda lépida/Vê um filme de quando em vez/Não entende o idioma inglês/Lava chão numa casa de chá”, cantava-lhe aos ouvidos, nos tempos mais difíceis, o Chico sempre disposto a denunciar as desigualdades, o desamor e a estupidez de um sistema que expatria parcela expressiva da juventude para o padecimento em terras alheias.

Avancemos no tempo. Seu Januário e Dona Helena começaram a notar depósitos na conta bancária que a ambos propiciava, até então, saques pelo cartão onde pingava o benefício magro da aposentadoria, não mais do que isso. E logo intuíram de onde provinham. Três meses depois, receberam a cartinha do filho mais velho com orientações para o emprego desse dinheiro. Atenderam, primeiramente, à recomendação para compra do telefone doravante utilizado nas conversas diretas, em viva voz.

Somados dois anos desses repasses, aqueles pais tinham o suficiente para aquisição de um belo sítio, à pequena distância da ponta de rua onde viviam, como lhes fora recomendado. A camionete e a carteira de motorista do caçula viriam a seguir. Que bom!

E, aqui e ali, a vida transcorria sem percalços até a quebra de um prato no piso aquecido da cozinha americana, quando lá fora o termômetro marcava dez graus abaixo de zero. “Que diabo! Por que, nessa terra de tanta tecnologia, ninguém fabrica prato inquebrável?”, perguntou-se o dono da casa,
ao juntar os cacos. Incomodou-se, também, com a nevasca ininterrupta, impiedosa, deprimente. Quando essa coisa iria parar?

O duralex foi a primeira das suas saudades. Vieram, em seguida, a do filtro de barro, a dos ímãs na geladeira, a do porta-ovos em formato de galinha, a das flores de plástico na mesinha de centro, a do pano de prato na cozinha materna com desenho de um coqueiral e a frase bordada em ponto de cruz: “Lembrança de Tambaú”.

Até então, jamais achara que algum dia, sob qualquer circunstância, poderia sentir falta disso que os refinados relegam ao mau gosto da gente mais simples, ao demodê, à vulgaridade, à cafonice. Nem imaginara que aquelas árvores peladas nos outonos compridos, aquele frio de gelar a alma, aquela comida sem graça e aquele povo sisudo seriam capazes de aborrecê-lo, dia a dia, cada vez mais.

Retornou à casa paterna, pouco tempo depois, tendo em mente a pequena Dorothy e sua sentença: “Não há lugar como nosso lar”. Mas escondeu isso de Deus e do mundo. Nunca tomaria para si os reclamos da garota, quando na terra mágica de Oz, com suas carências. Isso era pranto de menina. O saco cheio é que o fizera voltar. E, afinal, voltava para um sítio, uma camionete, o clima, os temperos nordestinos e os pratos duralex das avós e mães.

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