Forçoso concordar com Hildeberto Barbosa Filho, que sobre ele escreveu: “uma reflexão, ao mesmo tempo vertical e dilacerada, sobre os caminhos e os descaminhos das criaturas humanas na sua permanente e incontornável persecução de uma lógica para os fenômenos, de um sentido para a misteriosa e opressiva necessidade de existir.” O volume, para deleite extra do leitor, é enriquecido inclusive, à guisa de posfácios, com textos de três nomes expressivos na literatura brasileira contemporânea. O já citado Hildeberto Barbosa Filho, José Eduardo Degrazia e Ronaldo Cagiano.
O autor criou obra de categoria literária absorvente, tentacular: assimila tudo quanto lhe passa ao alcance e emprega modalidades expressivas sem perder a unidade, integrando-as em sua massa como se fosse o mero desenvolvimento de sua matéria-prima. E por isto mesmo, adota os mais variados instrumentos expressivos, o discurso, a narração, a digressão, as associações etc. com absoluta liberdade e sem perder sua integridade e unidade.
Sob a égide mitológica e milenar do “olho de Hórus”, símbolo egípcio que, ao longo dos séculos, traz o significado de percepção, clarividência e elo entre mundos, o autor constrói seu universo. Como diria Fernando Pessoa em “Tabacaria”, “a terra inteira, / mais o sistema solar e a Via-Láctea e o indefinido”. Tende para o épico dispondo em partes o pensamento dentro de uma clave de dilatação do “eu” ao infinito de suas possibilidades, a ponto de romper suas próprias barreiras e invadir o plano do “não-eu”. Louvável esforço de visualizar a realidade dum prisma cósmico, totalizante. Uma poesia notoriamente universalista, porque interessa-se também pelo sentimento e conhecimento simultâneo da perfeição e harmonia do Cosmos.
Um longo poema de 76 páginas no qual, observe-se: irmanam-se sentimento e conhecimento, pois intervêm concomitantemente a emoção como categoria poética fundamental, e a inteligência, como faculdade necessária ao processo de conhecimento. O autor busca costurar o “mistério” da harmonia universal, através dum jogo contínuo de contrastes. Vai das produção artística feita pelos hominídeos durante a Pré-História à tal da inteligência artificial, dos mitos ancestrais à comunicação de massa, da argila que o homem moldou seu pensamento em tempos imemoriais às viagens interplanetárias, dentro de uma dimensão estética que visa vencer a angustiante fugacidade do homem e das coisas. De fato. “Uma sólida e severa investigação acerca da viagem humana.”
Três exemplos. Estrofes colhidas ao longo do poema, sem muita dificuldades.
“Somos,
coitados:
engraçadamente,
desgraçadamente
limitados.
Mas há uma beleza
nas manipulações
das muitas limitações
de nossa natureza,
como o branco-e-preto jamais obsoleto – sempre exaltado – de filmes como A Lista de Schindler,
fotos de Sebastião Salgado.” (P. 46)
“Daí que – mais uma vez – gracias quiero dar
ao aparente inacabamento – irreal – fundamental
do
conhecimento,
ue se vê também nas pequenas coisas,
como na... solidão – que nos comove – da mulher enlutada
a cruzar a ponte levadiça,
em Arles,
século XIX,
sem saber que lhe faz companhia o Van Gogh,
uns trinta metros – à esquerda – atrás dela,
e que a inclui na tela,
sem saber que eu e você agora “vemos os dois,
tanto tempo / depois.” (P. 49)
.... a sina – clara como um paradigma – do ser humano
é
decifrar
o enigma! P. (56)
O autor tenta “decifrar o enigma”. Para tanto Solha se vê compelido a adotar uma atitude parafilosófica, de compreensão da harmonia cósmica semelhante à que informa os sistemas filosóficos. Uma ânsia de conhecer as magnas questões que povoam o universo e circundam o homem conduzindo-a a plasmar no poema, e de forma metafísica, um sistema de apreensão, uma mundividência peculiar. O cosmos e o homem. Consegue intuir a legião de contradições, antíteses, contrastes e “mistérios” que nos cercam. Entende e reduz a uma síntese tão perfeita quanto possível, que os harmoniza e lhes empresta uma ideia de unidade. A poesia, assim colocada em seu mais alto grau, torna-se ao mesmo tempo anunciadora, reveladora e condutora. Com isso o poeta acaba sendo veículo expressivo de uma concepção global do universo e do homem. Não é este também o objetivo da Filosofia? O que torna a poesia, em geral e sobretudo a poesia de “O irreal e a suspensão da credulidade”, inextricavelmente relacionada a ela.
Nesse poema, o que brota é, sem dúvida, uma cosmovisão totalizante do poeta, mas também de toda a gente, de seu povo, de toda a humanidade. O “eu” se transfigura, transborda, funciona como uma espécie de grande tela onde se projetam os “eus” da humanidade. Há uma notória intenção no sentido de captar e expressar as grandes e perenes angústias do homem. Decorre daí sua profunda universalidade. Em suma e repetindo. O autor é mestre em aliar inteligência e sensibilidade em grau superlativo. Um poeta que sente e pensa o que sente, ou sente o que pensa, pensa-sentindo ou sente-pensando, ao modo de um Fernando Pessoa ao afirmar que “o que em mim sente está pensando”. Significa que pensar envolve sentir e vice-versa.
Por tanto que assinalamos até aqui, pode-se sem favor, incluir o senhor W.J. Solha na galeria dos grandes poetas da atualidade. Retrata com desenvoltura o sentimento humano universal desses nossos tempos tresloucados, de que a maioria da humanidade não toma consciência, ou toma consciência sem conseguir comunicar, e do qual o poeta faz a sua arte de uma maneira muito clara e transparente. Em suma, uma poesia épica do mais alto valor.
* Livro: “O irreal e a suspensão da credulidade – sexto tratado poético-filosófico” – Poesia de W.J. Solha – Editora Arribaçã – Cajazeiras – PB., 88p. – ISBN: 978-65-6036-047-1