O filme Memórias de Paris (de Alice Winocour, 2022), no Festival de Cinema Varilux, tem como enredo os ataques terroristas em Paris ...

O Instante irreversível

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O filme Memórias de Paris (de Alice Winocour, 2022), no Festival de Cinema Varilux, tem como enredo os ataques terroristas em Paris com foco num dos cafés atingidos.

A personagem principal, Mia (Virginie Efira), sai de um encontro com o marido depois de uma desculpa conveniente para ir a um encontro amoroso, e ela, por conta da chuva torrencial, resolve parar num Café. Fica a observar detalhes nos clientes. Duas moças que tiram selfie, um pescoço com um colar, uma outra que se dirige ao banheiro, um aniversário celebrado na mesa vizinha, um olhar sedutor do aniversariante, quando, de repente, uma explosão.

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#FestivalVarilux
A partir daí vamos assistir às cenas, fragmentos do antes e do depois da tragédia. Mia sobrevive ilesa, mas com a memória em frangalhos, afinal, ninguém sai de um ataque desses impunemente. Cada segundo significa a fronteira entre a vida e a morte. O antes e o depois. Os flashes das pessoas, as que morreram, as que ficaram doentes ou com sequelas todas. Mia vai em busca de juntar os pedaços para recuperar a sua própria memória. Se isola, separa-se do marido, e vai buscar informações no próprio Café sobre possíveis pistas. Chamou-me atenção que os sobreviventes iam ao local em busca do minuto vivido. Um percurso nos rastros. E o mosaico de cada um vai se construindo nesse espaço de nuvem.

Como a filha que perde os pais e se apega a um detalhe dos murais de Monet no Museu del’Orangerie, cuja pincelada será o elo dela com os entes queridos. Sobreviver a uma tragédia daquelas e ao trauma de cada um. Nada será como antes. Lembrei-me de outros filmes que também falam do tema da irreversibilidade do instante: Tiros em Columbine (de Michael Moore, 2002), documentário que faz a crítica à exploração pessoal e artística da natureza da violência nos Estados Unidos, que consiste em fragmentos da publicidade das armas, mas que adota como forma fragmentada dos flashes de cenas dos alunos que vão chegando à escola e nós, espectadores, vamos nos desesperando com o que está por vir. Como não podemos avisar às possíveis presas, só nos resta esperar a tragédia dessa matança que marcou o início do nosso século. E, de instantes em instantes, vamos montando a nossa história afetiva com cada criança/personagem, e o seu caminho à morte. Desolador!

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Tiros em Columbine (filme) @medium.com/
Acho que também outro filme, Siryana (de Stephan Gaghan, 2005), com George Clooney no papel principal, tem cenas de um atentado numa praça de um país árabe, e vamos sabendo quem circula, quem senta num café, quem encontra quem, num caleidoscópio de pedaços de vida que, em breve voarão pelos ares. No caso de Memórias de Paris, Mia precisa encontrar o estranho que casualmente estava com ela na hora do ataque. Uma mão que segurou a dela, e a solidariedade no escuro e silêncio nos momentos de horror e pavor. Tema instigante e ameaçador para nós que assistimos a tudo isso em tempo quase real pela TV.

Quem será o escolhido ou os escolhidos? Onde é mais seguro ficar nos tempos de hoje? Qual ponte atravessar em Londres, sem que um louco apareça de carro, com faca, ou nos atropelando e/ou cortando? Uma roleta russa viver nos tempos de hoje, principalmente nos centros mais visados pelas guerras.
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Juca Jardelino e Ana Adelaide Peixoto
Acervo da autora
Acho que a mesma busca pelos vestígios do antes se dá quando da perda de alguém. No último dia 26/11, meu companheiro Juca faria 69 anos. Nos reencontramos na vida aos 33. Quando da sua partida, eu fechava os olhos para lembrar dos momentos tristes nos 60 dias no hospital. Refazia os banhos, os médicos, as tensões, o aperreio, as esperas, o seu olhar, a sua impaciência, a nossa resiliência, mas não só. Pensava na sua chegada em casa do trabalho, o trinco da porta, a sua presença pelos cômodos, pelos espaços da casa, e tudo que nem Mia no café/ bistrô, tentando captar o instante, como se isso fosse possível, mas que era tudo que eu tinha, e ela também.

Hoje meu pai teria 103 anos, e também tento reavivar, “recollected in tranquility”, como diriam os poetas românticos, a sua presença já há tantos anos esmaecida na minha memória, mas tão viva no meu coração. Também apanho detalhes da sua presença. O seu xadrez solitário na sala, acocorado no jardim mexendo nas plantas, os óculos na ponta do nariz, lendo o jornal, chegando em casa à noitinha com o pão debaixo do braço. Saudades. Não perdi a memória, pelo contrário. A minha explosão foi mais lenta e deu tempo de reter muito. Mas muito é muito pouco, já disse Caetano.

No entanto, o tempo é providencial, e depois de uma década, eu já não vago mais atônita pelas vias de minha memória. As lembranças e as presenças hoje estão em mim, deliberadamente instaladas no meu coração, as quais acesso sempre que tenho saudades, ou seja, quase todo o tempo.


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