Relendo, por desfastio, o “Eu e eles” de José Américo, volto a me deter em seu espanto ao ver a censura de Ilya Ehrenburg a Edouard Herriot, político e escritor francês no tempo da guerra, pela importância que Herriot dava “a noções tão completamente fora de moda como ‘cumprir a palavra e salvar a honra’.” Achava o ex-presidente do Conselho do governo francês que “devemos pagar as nossas dívidas aos Estados Unidos. Porque demos a nossa palavra”.
Nas suas memórias, o russo Ehrenburg, que fizera amizade com Herriot, depois de várias entrevistas com o radical-socialista preso pelos nazistas e libertado pelos russos, achava extraordinário, grotesco mesmo, que um ex-governante de uma grande potência do século XX “desse tamanha importância a questões burguesas como esta”.
Talvez Ehrenburg tivesse razão, a se considerar que naquele momento as consciências moral e política defrontavam-se com desabamentos muito mais hediondos e atrozes. Nesse mesmo capítulo das suas memórias, Ehrenburg faz alusão a um documentário sobre Auschwitz, “os cadáveres sendo levados para os incineradores, ao mesmo tempo em que eram resgatadas e embarcadas para os salões de moda alemãs seis toneladas de cabelos de mulher”.
Cumprir a palavra, num contexto desses, tem seu lado realmente grotesco diante de horrores tais como os descritos. São horrores que, felizmente, nunca vivemos, o que nos permite estranhar a censura a Ehrenburg, como fez o solitário de Tambaú, José Américo. Somos uma nação de uma única guerra entre vizinhos. A guerra brasileira, não sei se caberia o “felizmente”, tem sido interna, sem fim, ontem como hoje convivendo na mais extrema desigualdade social. As tais desigualdades regionais que deram lugar à proclamação do presidente Juscelino no Teatro Santa Isabel, em Recife, ao criar a Sudene: “Aceito essa responsabilidade ingente na convicção de que chegou a hora de salvar o nosso débito de honra para com o Nordeste. Ao heróico povo nordestino, cujo apego ao torrão natal, em meio a todas as vicissitudes climáticas, preservou intocada a unidade nacional, é preciso dar agora (1959) os recursos e o aparelhamento técnico capaz de arrancar a economia regional das garras seculares do subdesenvolvimento”.
A região cresceu numa ostensividade que se vê pelas torres da construção civil, aqui mesmo em João Pessoa, hoje a gerar sonhos e desejos de “famílias do Brasil inteiro que a escolheram (João Pessoa) para fixar residência” - como bem anota Glauco Morais, numa de suas colunas, ainda que advertindo para o que se torna agora urgente e ingente: a mobilidade urbana. Não podemos ser falsos para negar o crescimento. A frota de veículos concentrada e atraída pelas nossas regiões metropolitanas atingiu o patamar de 1.523.167 veículos com uma taxa de 383 por mil habitantes. A cifra consta de um Estudo Técnico realizado pelo Tribunal de Contas do Estado da Paraíba. Não se trata apenas de uma análise fiscal, e sim uma “avaliação de políticas públicas e sua geração de valor e benefícios na vida dos cidadãos”, como se lê na Introdução.
É documento como há muito não chegava às minhas mãos, desde que o IBGE passou a restringir-se à informação digital para especialistas.
Voltando à ideia inicial, não bombardeamos os hospitais e as creches dos nossos vizinhos, horrores comuns às grandes civilizações, mas não podemos dormir em paz com a extrema desigualdade social que permanece cada vez mais aguda.