Mais um livro de Hildeberto Barbosa Filho (já são mais de sessenta), o mais produtivo autor paraibano em todos os tempos. E autor de indubitável qualidade, tanto na prosa como na poesia. Desta vez, trata-se de Da Volúpia do Erro – Pensamentos provisórios, Editora Ideia, João Pessoa, 2023, reunião de pequenos textos (os tais pensamentos) anteriormente publicados, aos poucos, no Facebook. Comecemos, então, pelo título, que é por onde todo livro começa.
Costumo dizer que Hildeberto é antes de tudo um excelente criador de títulos para seus livros. Há nele esse particular talento criativo, que numa agência de publicidade, estou certo, seria bem aproveitado. É um dom especial para intuir e identificar a palavra ou a expressão que melhor atraia o olhar e a curiosidade do leitor para a obra, o que significa dizer um dom para a sedução do leitor, esse parceiro (do autor) cheio de manhas e resistências, qual um(a) amante cortejado(a) a pão de ló. Nessa mais recente publicação, o título (Da Volúpia do Erro) é retirado de um dos pensamentos, mas poderia perfeitamente ter sido tirado apenas da cabeça do autor, poeta acostumado ao uso e ao jogo inventivos das palavras.
Além da volúpia do erro, anda junto com ela, através dos muitos pensamentos do autor, outra volúpia sua que tem muito a ver com aquela: a volúpia da incerteza. Em outras palavras, Hildeberto, como todo bom pensador, repudia as certezas, os dogmas e mais ainda os fanatismos, sejam de que tipo for. Daí a provisoriedade que vê nas reflexões recolhidas no livro, não como sinal de fraqueza de suas convicções (que as tem fortes), mas como saudável abertura para eventuais mudanças, o que demonstra humildade e sabedoria de sua parte. Nada de ortodoxia. Nada de autoritarismo filosófico, literário, artístico ou acadêmico. Nada de imutabilidade engessadora e paralisante. Tal como Raul Seixas, Hildeberto prefere ser uma “metamorfose ambulante” do que ter “aquela velha opinião formada sobre tudo”. Portanto, as palavras-chaves para a inicial compreensão da obra, são, paradoxalmente, erro, incerteza e provisoriedade, naquilo que estimulam a heterodoxia, a liberdade e a dúvida criadora. O autor é cético e ao mesmo tempo cartesiano. E também um sonhador, um metafísico e muitíssimas coisas mais. Mas sendo sempre ele mesmo em sua pluralidade instigante.
Lembrei-me um pouco do Livro do desassossego, de Fernando Pessoa, outro poeta e pensador provocativo e inquieto. Porque essa é a estirpe literária a que pertence Hildeberto desde o começo: a de uma certa rebeldia, um certo inconformismo, uma certa sensação de incompletude e não pertencimento. Ele não é de pertencer a escolas, igrejas, panelinhas ou partidos. Pelo contrário. É um homem partido, como diria Drummond, em mil pedaços, como os pedacinhos de vidro dos caleidoscópios. Homem que só se deixa aprisionar por aquilo que ele permite que o aprisione. E guarda sempre consigo a chave da cela, para partir ou mudar quando quiser.
Os textos retratam um mundo de leituras e de meditações. O autor é, sem dúvida, alguém que muito tem lido e pensado. E também sentido na carne e na alma as dores do mundo, as dores do amor, as dores do simples viver entre semelhantes tão diversos. As dores da “solidão povoada”, para usar a bela expressão que é título de uma biografia de Pedro Nava. Às vezes, a indignação vem à tona e o gentilhomem não consegue conter na palavra a aspereza da pedra e do cacto herdada da paisagem de sua Comarca mítica. Há o que se relevar, portanto. Mas apenas de vez em quando, aqui e acolá. Salvo alguns reparos normais, a edição da Ideia está muito boa, como sempre.
Nem sempre estou de acordo com o que ele pensa e diz. Também eu, como toda a gente, tenho meus pensamentos provisórios, certamente não tão sábios no conteúdo nem tão belos na forma quanto os dele. Mas ainda quando eventualmente discordo, não cessa minha admiração por ele todo, a pessoa e o autor. Admiração que já completa quase meio século e que é partilhada por toda uma geração que o viu desabrochar desde o início, nas juvenis descobertas no curso de Direito da UFPB, anos 1970.
O leitor perceberá que há no livro toda uma teoria do poema e da poesia. Uma teoria que recusa este nome (que lembra erudição acadêmica), posto que espontânea, nascida naturalmente de suas vivências diuturnas com o fazer poético, de suas aprendizagens com outros poetas de sua devoção, de suas criteriosas leituras de crítico e de professor. O poeta, o poema e a poesia estão presentes no livro todo, como se fossem o centro dos pensamentos de Hildeberto. E são. Pois que ele tem vivido só para isso, intensa e exclusivamente. Não buscou nem busca cargos, honrarias mundanas, condecorações oficiais, pecúnias nem títulos. Os que por acaso amealhou na caminhada vieram mais a ele do que ele os procurou. Não deseja chefiar nem presidir nada nem ninguém, mas se reserva o direito cidadão de opinar com destemor. Não bajula nem aceita bajulação. Não possui vocação para áulico. Cultiva a gentileza, mas sem o sacrifício da verdade e da honra. Por ser múltiplo e não bitolado, frequenta a tribuna da Academia e a mesa do Bar do Baiano com idêntica reverência, equânime entre o ritual e a transgressão. E essa rica multiplicidade habita seus poemas e seus pensamentos, fecundando-os.
Se mais solerte, como muitos, poderia hoje ser um nome nacional de maior amplitude, a despeito da indiscutível respeitabilidade que goza nos meios literários do Brasil. Mas fez sua opção pela aldeia, por razões que só ele sabe. E aqui tem pontificado com independência e altivez, dispensando educadamente alianças e concessões que ofendam sua dignidade e seu senso de justiça. Tudo sem perder a simplicidade que é sua desde Aroeiras, simplicidade e cavalheirismo que andam de mãos dadas com insuspeitadas coragem e bravura caririzenses. Mas fiquemos tranquilos: sua peixeira é apenas a palavra. Certa e certeira.
Seus Pensamentos provisórios não cabem numa única leitura. É livro para muitas visitações, pois uma só não basta. É livro para se pensar. Pensamentos sobre pensamentos. Um gerando outro, como deve ser. Há filosofia, há literatura, mas há principalmente vida – e vida em abundância. Seus textos não são ficções, fantasias; são testemunhos e depoimentos existenciais de um intelectual e poeta militante, alguém que transita livremente de sua biblioteca ao bar da esquina, do recolhimento doméstico à feira de Oitizeiro, da contemplação do mar às serras da Comarca. Sua vivência importa quase sempre em convivência, pois recusa a torre de marfim. Sua volúpia se torna nossa também, como acontece com as obras que valem a pena. A meia taça de vinho da capa é simbólica e diz muito, como todo símbolo. É talvez um convite ou uma celebração, não podemos ter certeza – nem devemos, pois que pode ser as duas coisas ao mesmo tempo. Ou nenhuma delas, quem sabe?
Enfim, os pensamentos de Hildeberto podem ser provisórios, mas o livro que os encerra é definitivo, pois não está só de passagem, veio para ficar.