Tenho especial predileção pelos escritores, poetas, pensadores da suspeita. Aqueles que questionam as verdades estabelecidas, desvelam as motivações ocultas por trás das ideias e instituições, desafiam convenções literárias e sociais, exploram a incerteza, a ambiguidade, a complexidade, as contradições da condição humana, reconhecem a tragicidade, a dimensão noturna, sombria, melancólica da existência e, sobretudo, confirmam o peso mórbido da moral, a sádica dimensão dos moralistas e dos sobejamente religiosos.
Aprendi cedo a admirar o vigor iconoclasta desses intelectuais da suspeita, eu mesma avessa à aceitação resignada de situações e circunstâncias, sem questioná-las ou a elas resistir. Talvez por isso, eu nunca me deixe ancorar em supostas respeitabilidades, e sempre resista à monumentalização de homens, mesmo padres ou santos. Talvez por isso também, a minha espiritualidade se revele quase sempre inconciliável com as instituições e lideranças religiosas, bem como com as estruturas hierárquicas que limitam a experiência espiritual individual.
Explorando a natureza da religião, em 1927, mesmo ano em que Heidegger escrevia seu importante tratado Ser e Tempo, Freud, na obra O Futuro de uma Ilusão, questionando a validade e o papel da religião na sociedade humana, argumenta que a religião é uma espécie de consolo psicológico, uma ilusão que oferece segurança emocional diante das incertezas e dificuldades da vida.
Nietzsche, que não é contrário à espiritualidade, destaca a busca individual por valores e propósitos autênticos mas rejeita a religião institucionalizada, por suas imposições morais. Para ele a religião é uma forma de ilusão que enfraquece o indivíduo, oprime sua liberdade e seu potencial criativo; é, além do mais, uma forma de controle social que mantém as pessoas obedientes e submissas às autoridades religiosas. Propondo, então, uma conexão com o divino que não dependa de conceitos religiosos preestabelecidos, vai se referir ao “Deus desconhecido”, uma chamada para a auto-afirmação, para a criação de valores próprios que não dependam de dogmas religiosos tradicionais. Insinua, assim, um entendimento mais autêntico e pessoal do divino, encontrando-o dentro de si mesmo e na própria vida.
Foucault, outro pensador da suspeita, dirá que a religião desenvolveu uma forma de poder que visa controlar e disciplinar os indivíduos, moldando suas crenças, comportamentos e subjetividades. Esse poder, que Foucault chamará de pastoral, se baseia na ideia de cuidado e de orientação espiritual mas impõe regras e normas de conduta. Das suspeitas de Foucault decorre ainda sua reflexão sobre as relações entre religião e sexualidade, religião e poder político.
Emily Dickinson, poeta americana do século XIX, mantinha com a religião uma relação complexa e ambígua; embora de família religiosa e frequentadora da igreja, questionava e desafiava as crenças religiosas tradicionais de sua época. Fernando Pessoa, outro poeta, dos maiores do século XX, explorou várias correntes filosóficas e espirituais, mas não se identificou com nenhuma religião específica. Sua poesia reflete sua busca contínua por uma compreensão mais profunda da existência e da espiritualidade, seu distanciamento das tradições religiosas institucionais e a procura de sua própria verdade espiritual através de sua escrita e exploração intelectual.
Rainer Maria Rilke, poeta de versos líricos e intensos, apaixonado pela livre e impenetrável intelectual Lou Andreas-Salomé, embora criado por uma família católica, e com educação religiosa tradicional, explorou várias tradições religiosas e filosóficas mas também se afastou das institucionais e procurou sua própria verdade espiritual. Sua poesia reflete sua busca constante de conexão com o divino e uma exploração da espiritualidade além das fronteiras religiosas convencionais.
Por tudo isso, para mim, a contundência violenta e preocupante dos ruídos do hospital Padre Zé, e toda a hipocrisia que cerca o caso, apenas revelam os repulsivos alvéolos religiosos por onde se dão trocas sórdidas. Deus está em outra. Mais do que na religião, é possível encontrá-lo na vitalidade erótica da poesia ou no arrebatamento de um solo de violino...