O livro é Pensamentos vadios (Editora Ideia, João Pessoa, 2022), da professora e filósofa Maria das Neves Franca, a Nevita. É um livro da maturidade existencial e intelectual da autora (cada vez mais jovem), que trata sobre tudo, daí o título, imagino, que conduz o leitor à reflexão mais séria a respeito de assuntos aparentemente simples e cotidianos; daí também sua insuspeitada profundidade, mas sem renunciar à leveza típica da crônica e ao sabor que só as escrituras autênticas possuem.
A obra pode até ser a primeira sob a forma de livro, já que a autora confessa suas dúvidas quanto à publicação, mas, afirmo, não é trabalho de estreante. Pelo contrário, muito pelo contrário. A forma e o conteúdo dos textos revelam alguém muito à vontade e muito experiente com a escrita e com o pensamento, características incontornáveis dos verdadeiros escritores. O livro, portanto, é profundo (sem ser sisudo); e se perfunctórias são as presentes considerações, a culpa é da falta de fôlego deste cronista para mergulhos mais ousados, da limitação do espaço e do compromisso com a simplicidade inerente ao gênero lítero-jornalístico adotado.
A divisão dos temas adotada pela autora já diz muito sobre o que ela oferece ao leitor em seu caprichado volume: “de mim”, “de filosofia, pedagogia e ternura”, “de psicanálise”, “de filmes que eu vi”, “de livros que li”, “de saúde, doença e cuidado” e “de viagem”. Eis aí uma amostra do universo pessoal e cultural de Nevita (permita-me ela chamá-la assim, como fazem seus inumeráveis amigos), colocada à disposição de quem pretenda não apenas ler mas fruir intelectualmente um texto múltiplo, rico em vários sentidos e igualmente enriquecedor à vista do quanto pode nos acrescentar, em termos de conhecimento e de sabedoria.
Sabedoria. Esta é a palavra adequada, penso eu, para traduzir o espírito que atravessa e conduz a obra. Os pensamentos podem até ser poeticamente chamados de “vadios”, como fez a escritora no título provocador, no sentido de livres, soltos, errantes, pois ela não pretendeu, a despeito de ser filósofa, emprestar-lhes a circunspecção e a sistematização típicas da filosofia. Longe disso. Mas eles não são superficiais nem tolos, longe disso também, pois trazem, cada um, o “peso” de uma vida vivida plenamente e, mais que isso, pensada, bem fiel à lição de Sócrates, que disse: “A vida não examinada não vale a pena ser vivida”. A leitura do livro sem dúvida demonstra que a autora de fato muito viveu (sem perder a jovialidade) e muito refletiu (sem perder a graça) antes de escrever. O que mais pode desejar o leitor?
No Prelúdio, a autora afirma, com modéstia e verdade: “Não, não me considero uma escritora, muitíssimo longe disso; mas também não é preciso sê-lo para, como observadora atenta da vida e da condição humana, registrar a minha experiência enquanto ser no mundo”. Sim, modéstia e verdade em tais palavras. Modéstia porque Nevita é, para todos os efeitos, uma escritora – e seu livro é a prova material disso. E verdade porque não é preciso sê-lo necessariamente, na pura expressão, para inscrever no papel ou na tela o fruto de vivências e de pensamentos, sejam eles “vadios” ou não. Sem dúvida, a autora sabe aliar o conteúdo reflexivo dos textos a um estilo que, sem nenhuma impropriedade, pode se ter como literário, na medida em que, respeitando a gramática, possui a cor, o sabor e as nuances inerentes à literatura.
Impressionaram-me particularmente a força, a saudável rebeldia e a independência femininas da escritora, as quais como que explodem à vista do leitor, surpreendendo-o de modo positivo, à medida em que ela vai se revelando uma valente e antecipada mulher na aldeia de ontem e de hoje, mas sem o sacrifício – de resto desnecessário – da cultivada feminilidade e da ternura, como queria o guerrilheiro célebre. O conteúdo do livro mostra que mulher destemida tem sido Nevita. Insuspeitadamente destemida. E tinha (tem) tudo para ser, como diria Simone de Beauvoir, “bem comportada”, no sentido de submissa e convencional frente aos valores sociais dominantes. Bem nascida e educada por freiras, poderia ter seguido outra estrada, mais fácil e talvez glamorosa, se bem que menos interessante, como tantas de sua geração: a das mulheres do lar que, sob as expensas dos maridos, deixam-se festivamente levar pela vida, ao invés de levá-la elas mesmas, às suas custas e sob seus critérios. Eis a Nevita elegante e sobriamente feminista, modelo de mulher contemporânea, inteligente, culta, autônoma e sem raiva dos homens.
Não deve o leitor, entretanto, esperar encontrar na obra originalidades fundadoras, já que se sabe que o essencial sobre a vida e o homem foi dito, há séculos, pelos gregos clássicos e depois por Shakespeare. Nada de maçante reinvenção da roda. Aqui o que importa não é tanto o que se diz, mas o como se diz. E quanto a este aspecto, o do “como”, a autora confere prazer à leitura, pois escreve com graça mesmo quando aborda questões mais graves – e portanto menos graciosas. Sua maneira pessoal de vivenciar, pensar e escrever sobre seus temas é o que dá encanto especial aos textos.
Há muito a se aprender com os pensamentos expressos no livro. Experimenta-se – e como! - com as experiências alheias, as boas e as nem tanto. Em essência, a condição humana é a mesma para todos nós, independentemente de tudo. Por isso, a arte e a literatura têm o que nos dizer e ensinar. Ambas são pedagogas, ou seja, nos conduzem pelas mãos, como fazem (ou faziam) as primeiras mestras. Nevita é, entre outras coisas, professora. Através de seu livro marcante, deixemo-nos então, suavemente, levar por ela.