As semanas seguintes chegam trazendo novas e inesperadas atividades para Carlos e amigos. Numa delas, talvez se possa dizer, invocando a seus favores uma suposta inocência da idade, em que a precária juventude os aliviou de peso na consciência - e tornou-a menos espúria. A sós, ou em grupo, captura gatos para serem atirados como alimento na jaula da onça, único felino do circo. Não há recompensa em dinheiro: Um gato, ou dois, a depender do porte, garante uma entrada de circo.
Tão logo, no entanto, os bichanos começaram a escassear pela vizinhança, os mais afastados ganharam a proteção de seus donos - previamente alarmados com a notícia que se espalhou como pólvora, De qualquer modo, Disse Axéssio, A atividade perversa de caçar aqueles gatos não partiu dos meninos. A ideia veio de lá, do circo.
Mas o que são crianças!… não recordo nenhum de nós a contestar essa crueldade, e, pelo contrário, lembro a surpresa e o alvoroço com que recebemos a notícia: como uma bênção. E agora me ocorre o quanto deva tê-la apreciado Carlos, que, na ânsia de não perder as noites subsequentes à estreia, já havia, àquela altura vasculhado com os olhos, lenta e atentamente como era seu hábito, quase todos os meios-fios da cidade. E eis aí mais uma – esquisita? – peculiaridade sua: em momentos de necessidade, não tendo a quem recorrer, Carlos apelava, esperançoso, para um golpe de sorte. Adquirira a prática invulgar desde que achou – casualmente – sua primeira cédula enganchada numa reentrância de meio-fio.
Mas a barganha não tardou a mudar de foco, e logo na semana seguinte a meninada se vê empregando suas energias no fornecimento de água para os mambembes – mais uma vez, destaque para Carlos, com seu pequeno pau de galão nas costas –, e só na terceira e última semana, quando por força de repetição os espetáculos diários forçosamente terão o seu brilho agastado, os garotos haverão de, finalmente, desmobilizar-se de novos esforços. Para a maior parte deles, Disse Axéssio, A passagem do Circo pela cidade legou momentos inesquecíveis, mas naquele momento – antes mesmo do encerramento da temporada – os espetáculos finais tinham perdido seu atrativo e arrastavam-se melancólicos. Só que não. A permanência do Circo lhes reservaria ainda uma grande surpresa.
O dia escurecia quando Carlos e os outros passaram e viram o Circo arriado no chão. Desmontado, parecia bem menor, e um rápido olhar os informou de que o elenco já havia partido, deixando uma equipe de retardatários carregando o caminhão com o resto da troçada. Usando tábuas da arquibancada, o punhado de homens armou uma cerca de escoramento acima das grades da carroceria, para melhor conter a carga.
É a vez então da meninada mostrar-se indiferente à partida do circo. Nos últimos dias, aliás, pareciam até avessos à sua permanência na cidade. Carlos arriscou então um palpite de que o caminhão não partiria naquela noite, mas de manhãzinha, De madrugada, Foi corrigido pelo caçula do grupo, que falou com ares de entendido, A melhor hora para um caminhão viajar é de madrugada, otário, Justificou o fedelho, de cenho franzido.
Carlos nada respondeu. Talvez estivesse com o pensamento longe. Sendo bem provável que já viesse ele de antemão atento, para quando soasse a hora do circo arrear a empanada. Tinha quase o dobro da idade do fedelho, mas, certamente, perdoara-lhe a xiste, quem sabe até admirara-se dela, nessa forma peculiar que têm meninos de se compreender, ser solidários lá entre eles. Você nunca verá em um grupo de meninos, hein, algum pior do que o menor deles, Aventou Axéssio.
Metido entre garotos maiores, Seguiu na explicação, O caçula do grupo vê-se beneficiário de concessão e privilégio, precisa esforçar-se a todo instante para não desmerecer da benesse, precisa, assumidamente, ser o mais sarcástico possível, o mais implacável deles, e o mais atento do grupo a qualquer sinal de fraqueza interna ou perigo externo. Qualquer dúvida é suficiente observar um cão relativamente frágil, late a todo instante para mostrar serviço ao dono, que lhe abastece de comida e afeto.
Numa hierarquia de idólatras, Continuou Axéssio, A figura do mascote é seu lado mais terno, e que se faz necessário cultivar. Uma concessão ao mimo que parece acenar aos mais velhos com uma possibilidade qualquer de redenção pela pureza, algo assim. Talvez essa manifestação de empatia pelos fedelhos seja a máscara necessária com que se utilizam da inocência alheia, apropriando-se de mais um futuro ignoto – mutilando esse futuro, claro –, ao oferecer em holocausto qualquer possibilidade mais ambiciosa de autonomia pessoal que porventura brote do pequeno neófito, movidos talvez por alguma tola pretensão de suprir a inevitável…se é que não estamos buscando agora algo mais justificável para a patifaria habitual da fábrica de bolachas humanas, validada que sempre foi por todas as legiões infantas de recrutamento compulsório ao longo do tempo, permeado sempre de guerras perversas e tempos de paz repletos dos ocasionais escoteirinhos, etc, baseando-se quem sabe no repasse de alguma nova/velha doutrina, que, por mais que tentem, não passará de um simples caso de projeção pedófila, e se for isto, deus meu, que tirem o cavalinho da chuva… jamais irão além das conhecidas falanges juvenis, que se perfilam, através de uma coreografia forçosamente pobre de imaginação, no eterno beco sem saída dos camisas pretas, hein. Dá uma pausa, corre os olhos em volta e indaga, Mas, a quem isso pode interessar, Pergunta. E se responde, A mim, ora, eu fui aquele fedelho.
(excerto de “MacCaco”, livro inédito de Alberto Lacet)