Um sonhador, mas bom aplicador de golpes, com gosto refinado para comidas e vinhos, que guarda em seu íntimo um chef ; um embrutecido...

A vida não é o preto no branco

seriado caleidoscopio netflix
Um sonhador, mas bom aplicador de golpes, com gosto refinado para comidas e vinhos, que guarda em seu íntimo um chef; um embrutecido e esquentado, de raciocínio limitado, apesar de saber lidar com a abertura de cofres complicados; uma expert em química, que conhece as sutilezas dos ácidos e dos explosivos, mas que adora a agressividade do tosco arrombador de cofres; uma advogada que conhece a lei e as suas brechas, além dos contatos importantes com o mundo dos interceptadores de furtos; um mecânico e motorista, calado, tímido, que trabalha ao ritmo de um batuque criado na hora, mas deixando um vislumbre de pura aparência; um homem inteligente,
frio, calculista, que entende de cofres, segredos e alarmes, de roubos sem violência, que sabe, mais do que tudo, esperar, com a consciência de que o açodamento não é o seu forte e a vingança é um prato que se come frio.

Juntem-se estes elementos e a atuação impecável do excelente Giancarlo Esposito (Breaking Bad e Better Call Saul), e teremos as peças de um caleidoscópio, na sua diversidade de cor e formas, dando nome ao seriado americano, criação de Eric Garcia (EUA, Netflix, 2023), cujas partes vão se encaixando com habilidade e inteligência, mas cujo entendimento necessita da contribuição atenta do espectador.

Cada episódio tem uma cor e elas compõem as sete cores básicas do arco-íris. Cada cor tem a sua simbologia, que cabe ao espectador desvendar, diante de um jogo narrativo não linear, que mostra o antes e o depois da ação principal, mas só a apresentará como último episódio, cuja cor, obviamente, é a branca, síntese da decomposição das cores básicas e da própria narrativa. A prolepse da narrativa, sem mostrar a sua ação principal, em nada prejudica a expectativa do espectador. Nisto reside a inteligência dos criadores da série. Nem também se mostra confusa a não-linearidade da ação, o que contribui para que não se diminua o interesse
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Netflix ▪ Div.
de quem venha a assistir a Caleidoscópio, uma das melhores séries dos últimos tempos. Recomendo, sobretudo aos que, neste momento, no Brasil, acreditam que mocinhos e bandidos estão, inflexivelmente, definidos.

A esta lista inicial de personagens, acrescente-se uma agente do FBI obcecada por prender o bando e por desvendar o caso, negligenciando a família, deixando de lado as advertências do seu chefe e passando por cima das regras: o lado óbvio e clichê dos filmes e séries policiais, poderia pensar alguém. Mas não é. O caleidoscópio do título não é só alusivo às cores e formas, mas às personalidades humanas. A série não apenas não se torna maniqueísta, numa luta entre o mal e o bem, terminando com a vitória irremediável do primeiro. Mas, de maneira leve, bem-humorada, com a tensão e o suspense na medida certa – ela não se preocupa em se definir estruturalmente como uma série policial –, a série vai em outra direção, com perguntas sub-reptícias e não menos incômodas: Quem é bom? Quem é mau? Roubar de ladrões ou de exploradores é roubo? É crime, moralmente falando, roubar diamantes que estão impregnados de sangue de inocentes dos países de onde foram extraídos? E roubar títulos bancários de origem ilícita, cujo donos são obscuramente ricos, dentre eles um comunista, todos banqueiros e, propositadamente, denominados a Tríade? Qual o papel do poderoso FBI não querendo que se avance na investigação, aparentemente impedido pelo poder da Tríade? A agência deve procurar ou não a justiça e a prisão dos bandidos, quaisquer que sejam eles? A justiça pode agir contra os que são poderosos e manipulam governos e poderes?

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Os idealizadores de Caleidoscópio não buscam atribuir culpa a ninguém, mas parecem direcionar a sua narrativa para algo que transcende a simples culpa: a consciência da responsabilidade, mostrando que as fronteiras entre o bem e o mal, assim como as fronteiras do brinquedo que dá nome à série, não apenas se tocam, o mais das vezes, se transformam e mudam de cores, assim como os que apregoam a necessidade da democracia, mas defendem as ditaduras; que se mostram a favor da liberdade de expressão, mas vivem num namoro eterno com a censura antecipada; que se mostram partidários da ciência, mas quando a ciência não é conveniente às suas crenças doutrinárias, ela é descartada...


Toda ação desencadeia uma consequência e elas podem ser boas ou más. Por outro lado, nem todos são atingidos do mesmo modo pelas consequências provenientes de suas ações ou das ações dos outros. É normal se pensar que ações boas resultam em boas consequências; ações más, em más consequências. A vida, no entanto, não se define em preto e branco, mas entre o preto e o branco, na sua infinidade de nuances, lembrando que, o branco, ao passar pelo prisma da existência se multiplica em várias cores, e as cores não são absolutas, cada uma delas se liga à seguinte, a partir das atenuações, mostrando as frágeis fronteiras entre elas.

A vida é um caleidoscópio e a sua configuração depende de como movemos o cilindro que encerra os fragmentos e que irão, momentaneamente, apenas momentaneamente, se definir como uma forma e uma coloração efêmeras.

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