Em 20 de março de 1953 morria, aos 60 anos, de câncer no pulmão, o alagoano Graciliano Ramos, no Rio de Janeiro, cidade que adotou, após o cárcere, até o precoce final. O velho Graça fumou demais, cigarros fortes, não raro feitos pelo próprio com as mãos, à moda sertaneja a que se manteve fiel em vários aspectos. Sua enfermidade, pois, não causou surpresa a ninguém, nem a ele mesmo, lúcido como foi. O cigarro sempre foi um vício, mas também uma muleta social e um narcótico portátil, droga leve e embriagadora que a muitos se torna indispensável no cotidiano da vida. Cada qual sabe do que precisa para suportar o peso da existência. No caso dos escritores – e de Graciliano em particular —,
a literatura também exerce esse efeito terapêutico – e redentor.
Segundo a crítica, Graciliano está incluído no chamado Segundo Modernismo, da década de 1930, mas que se iniciou já em 1928 com o inaugural A Bagaceira, do paraibano José Américo de Almeida. Seu primeiro romance foi Caetés, de 1933, mesmo ano em que o pernambucano Gilberto Freyre dava a público seu clássico Casa Grande & Senzala. Interessante essa coincidência. Duas inaugurações fundamentais para as letras nacionais, dois autores nordestinos, comprometidos em mostrar ao país e ao mundo realidades incontornáveis do Brasil profundo – e particularmente de um Nordeste que boa parte dos brasileiros até então fazia questão de ignorar, principalmente uma certa intelectualidade carioca e paulistana, bairrista, preconceituosa e arrogante, cosmopolitas de araque. Daí se falar, com razão, em Segundo Modernismo, de viés regionalista, pois o Primeiro, de 1922, foi eminentemente paulistano, nacionalista mas com ambições mais amplas, voltado para o folclore e também para a contemporaneidade de então, com suas “modernidades” de automóveis, fábricas e vida urbana, totalmente de costas para a “civilização” dos engenhos de cana-de-açúcar e do couro e securas dos sertões longínquos. Esse modernismo de 22 foi expressamente renegado por Graciliano – e até de forma irônica. Numa entrevista concedida à Revista do Globo, em 1948, ele respondeu à pergunta: “Quer dizer que não se considera modernista?” nos seguintes termos peremptórios: “Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeiras dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”.
A propósito, e sem negar a importância do “movimentozinho” de 1922, Ruy Castro defende a tese de que a célebre Semana de Arte só poderia ter surgido mesmo na então provinciana São Paulo daquele tempo, ansiosa por apresentar-se como “moderna”. O Rio de Janeiro, então capital política e cultural do país, não tinha essa necessidade, pois já era, para quase todos os efeitos, uma verdadeira metrópole, em sintonia com o resto do mundo desenvolvido. Os paulistanos naturalmente ficam irados com essa teoria que os desmascara, mas, paciência, é a verdade.
Ainda segundo a crítica, o alagoano foi modernista, sim, mas não, a rigor, regionalista, diferenciando-se, portanto, de José Américo de Almeida, de Rachel de Queiroz, de José Lins do Rego (do Ciclo da Cana-de-Açúcar) e de Jorge Amado, estes mais preocupados em realçar os problemas sociais nordestinos, cada qual com seu olhar pessoal e localizado. Em Graciliano, a modernidade aparece mais com o realce da psicologia dos personagens do que com o da paisagem. A secura desta última, típica dos sertões (mas não do brejo e do litoral, esclareça-se), ele levou para sua escrita substantiva, seu estilo magro como ele próprio e os retirantes, bem de acordo com seu temperamento isento de expansividades derramadas. Essa personalidade que tinha muito de amarga e que não se escondia para agradar quem quer que fosse, levou um crítico a chamá-lo de “rabugento” para diferenciá-lo do “bruxo” Machado de Assis.
Curioso que ele tinha algumas reservas quanto ao autor de Dom Casmurro. Atribuem-lhe uma frase sobre o outro, plena de preconceito racial: “Esse negro metido a inglês...”. Seu filho, Ricardo Ramos, também escritor, no perfil que traçou do pai no livro Graciliano – Retrato Fragmentado (Editora Globo, São Paulo, 2011), afirma que só por duas vezes viu o genitor chorar: uma, por ocasião da notícia do suicídio do filho Márcio; outra, quando soube da morte de Stalin. Vejam só. Chorar por Stalin. Curiosidades pessoais que surpreendem, mas que em nada diminuem o reconhecido valor da obra graciliana.
Outras obras do autor também são da década de 1930: São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938). Tempos ricos, não há dúvida.
Pessoalmente, demorei um pouco a apreciar Graciliano, seu texto econômico, afiado como uma peixeira de matuto. Diferentemente do que ocorreu com Zé Lins e Jorge Amado, os quais logo me seduziram sem esforço. Até hoje, respeito o alagoano, mas não o amo, como autor. É o mesmo que acontece com a poesia de João Cabral de Melo Neto e a de Drummond: deixo a primeira na estante e levo a segunda para a mesinha de cabeceira da cama. Afinidades eletivas? Certamente. Mas também outros motivos que não pretendo escavar. Todavia, devo confessar que o passar do tempo tem me aproximado devagarinho do austero ex-prefeito de Palmeira dos Índios. Percebo que é a compreensão conduzindo à afeição, sábio fenômeno da maturidade – e mais ainda: da velhice. Compreender para perdoar e compreender para amar.
Uma geração de gigantes, a de Graciliano. Fazem falta todos eles na literatura brasileira. Novos valores têm surgido desde então, claro. Mas serão gigantes também? Só a posteridade dirá, após a depuração do tempo, derradeiro julgador. Modestamente, contemplando a linha do horizonte atual, fico em dúvida se, na névoa, identifico alguma montanha se destacando na planície.