A deusa de róseos dedos põe cores no céu da Califórnia enquanto leio “I am” (Eu sou), de John Clare. Tristeza, solidão e o desejo de...

Tristeza, solidão e o desejo de encontrar a paz

crepusculo arvores solidao paz
A deusa de róseos dedos põe cores no céu da Califórnia enquanto leio “I am” (Eu sou), de John Clare. Tristeza, solidão e o desejo de encontrar a paz são os temas desse rico poema, talvez o mais famoso de Clare, um romântico inglês do século dezenove que escreveu seus versos enquanto estava internado em um hospital psiquiátrico. As palavras pungentes me comovem e eu me deixo conduzir. Aprendi recentemente uma nova economia, a das lágrimas: entrego-as tão-somente como tributo aos que me iluminam. O mal que me fazem ou as dores do corpo não merecem receber a emoção líquida que habita os meus olhos. Evito ao máximo desperdiçá-la com autopiedade ou rancor.

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K. MacKinnon
Tantas coisas me ocorrem diante da beleza agoniada dos versos escritos há mais de 150 anos. “Eu sou – mas o que eu sou ninguém sabe” e “mesmo os mais queridos, os que eu mais amei, são estranhos – mais estranhos que os demais” soam familiares a tantos humanos que anseiam por ser compreendidos. Conhecer o vasto e tortuoso território do coração alheio é ilusão que a realidade e a maturidade retiram. Não é apenas o poeta deprimido que se sente um estranho para os amados. Cá estamos nós todos carregando a solidão do ser e, à medida que envelhecemos, cada vez mais conscientes de que a riqueza dos fios entrelaçados que compõem o nosso espírito é captada superficialmente, como um novelo de muitas linhas que, visto de longe, permite identificar apenas um ajuntamento de cores e o formato redondo.

“Eu sou o autoconsumidor das minhas aflições” é um verso que gosto demasiado. Diz tanto sobre o hábito de cultivar e aprofundar as dores. Clare transita pelas flutuações da mente, expondo o tormento das sombras que surgem e desaparecem: agonias delirantes e sufocadas do que chamamos amor – esse tão ansiado sentimento que, mal se assenta à nossa mesa com seu cortejo de plumas e canções, não raro é convertido em chicote e espada. Prova máxima da nossa vocação para o paradoxo, o auto boicote ou a estupidez.

Ponho os versos mais sofridos de John Clare na conta da depressão do poeta. Assim como van Gogh e Virginia Woolf, Clare batalhava contra a própria mente. Transpôs tudo para versos impactantes (“no mar vivo dos sonhos despertos não há sentido da vida
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G. Ritchie
ou alegrias”) e depositou suas esperanças em um futuro pós-morte, em que adormeceria docemente, como na infância, aconchegado nos braços de seu Deus, em cenários tecidos de sonho e jamais tocados pelas paixões humanas. Um lugar em que se deitaria, imperturbável, sentindo a grama abaixo do corpo, e tendo acima a abóbada do céu. Tal imagem me remete a outra cena criada por um escritor brilhante, Liev Tolstoi, em “Guerra e Paz”: a do príncipe Andrei caído no campo de batalha, sereno, contemplando o céu azul, pondo a existência em perspectiva, focado no que realmente importa.

Retiro da ordem e subverto o sentido de um verso para encerrar este texto: “E, ainda assim, eu sou e vivo”. Afasto as tristezas do poeta e celebro a minha própria vida, transbordando de gratidão por esse tempo curto em que experimento a alegria única de existir.

Eu sou. Eu vivo. Nas minhas veias ainda flui o sangue, meu rosto se ruboriza de prazer ou de vergonha, carrego experiências únicas. Eu sou um mundo semidesconhecido, um planeta inteiro de sonhos e tropeços, que gira como bailarino em uma galáxia imensa. Ao meu redor há tantos vizinhos. Neles percebo a vida pontuada por delícias, aflições e espantos. Não disfarço o encantamento. Nada pode ser mais fascinante que estar aqui, agora, testemunhando o teatro cósmico, pleno de som, fúria e flertes com a felicidade.

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