Quando viajo lá para trás nos meus tempos, surgem-me duas figuras que encantaram meus verdes anos: Meu avô, o Vico e o irmão dele, o Miro. Ambos cresceram em berço de poucas letras, mas souberam driblar essas destemperanças que a vida lhes impôs. Desta feita vou contar um pouco mais de tio Miro.
O velho Vico foi homem de leitura, para mim sabido que só um danado. Quando se aventurava pelos sertões da Mantiqueira não se perdia em mata fechada, pois era capaz de, quando achasse uma clareira, se guiar pelas estrelas. Conhecia os mistérios da eletricidade e também porque o mundo tem quatro estações. Nunca ouvira falar nas leis da Física, mas conhecia os enigmas que permitiam o equilíbrio de suas edificações.
O velho Vico foi homem de leitura, para mim sabido que só um danado. Quando se aventurava pelos sertões da Mantiqueira não se perdia em mata fechada, pois era capaz de, quando achasse uma clareira, se guiar pelas estrelas. Conhecia os mistérios da eletricidade e também porque o mundo tem quatro estações. Nunca ouvira falar nas leis da Física, mas conhecia os enigmas que permitiam o equilíbrio de suas edificações.
Viajava pelo passado da humanidade. Foi ele quem me contou de Leônidas, o rei espartano, que com só trezentos caboclos valentes deu uma pisa daquelas no rei dos persas, aquele porqueira que comandava um bando enorme de gente frouxa. Também foi mestre no ofício que abraçou como aprendiz quando mal completara uma dúzia de primaveras. Foi carpinteiro famoso em Campos do Jordão e ainda hoje pode-se ver edificações que “como um pássaros sem asas” brotaram de suas mãos. Casas com telhado de três ou quatro águas que testemunham ainda hoje sua habilidade de artesão e sua alma de projetista. Contador de causos. Amava ouvi-lo na quentura do fogão à lenha que lá nos altos da serra aquecia minha imaginação de menino. Como já disse, meu avô era um danado.
Tio Miro, além da bossa de contador de causos, não entendia dessas coisas que meu avô aprendera dos livros. Mas, conhecia muito do que os olhos não veem. Ele foi quem me contou que corpo seco é um defunto que foi expulso da cova depois de enterrado porque foi gente ruim quando passou pela vida. Jurava que na Semana Santa de 1926 matou um lobisomem na Volta Fria, do Rio Capivari, ali pelas bandas de Jaguaribe. O Lobisomem andava assuntando casa com criança que ainda não fora batizada. Deu um jeito no tinhoso com uma espingardinha pica-pau, aquela de carregar pela boca. Estão vendo como tio Miro era valente também?
Enquanto o nosso Vico namorava discretamente as ciências, tio Miro flertava com as veredas impenetráveis do imponderável. Para tudo tinha uma explicação que passava ao largo do que é consensual ao conhecimento que a humanidade produziu. A origem das espécies, por exemplo, para ele nada tinha a ver com o que julgamos ser a mais absoluta verdade. Então, um exemplo dessas idiossincrasias, ou melhor, dessas invencionices desse meu tio.
Contava ele que de certa feita, lá no céu, a urubua (assim ele chamava, a que fazia par com o urubu) descobriu que seu marido, o urubu, estava batendo as asas para uma urubuzinha muito enxerida. Não gostou daquele fuxico e resolveu dar o troco na mesma moeda, ou se preferirem, no mesmo atrevimento. De antemão decidiu que com ave de rapina era muito arriscado e assim deu uma rasante no terreiro mais próximo. Ficou assuntando com quem ia por uma galha naquele marido safado. Primeiro viu um galo.
Mas, o bicho já estava meio velhote, desanimado e na hora agá, poderia falhar. O pato era muito deselegante e aquele andar todo troncho o deixava fora do “cardápio”. O marreco era só um pato melhorado e não valia a pena. O ganso era muito escandaloso e muito cheio de si. Mas logo apareceu alguém que lhe coloriu os olhos: Um pavão!
Era tudo o que queria. Já pensaram? Como ia ser bom fazer menino (no caso, pintinho ou avezinha) com um bonitão como aquele ali. O marido ia se moer de raiva e inveja para aprender a não ser safado.
Ah, os filhotes, como seriam lindos! Voariam, como ela, bem mais alto do que um pavão era capaz de voar. Puxariam pela beleza do pai e lá nos altos do céu quando planassem ao sabor das correntes de ar quente, abririam o leque colorido de suas caudas para matarem a urubuzada de inveja.
O pavão ao ver aquela urubua no quintal, toda cheia de chamego para o lado dele, resolveu encarar a parada e loguinho, loguinho estavam os dois embaixo de um pé de mamona fazendo safadezas e indecências.
Mas, Deus não gosta de quem não respeita o que está escrito na Tábua de Moisés. Pois vejam só, depois de um choco de trinta e nove dias nasceram quatro pintainhos. Passaram as onze semanas protocolares e nada dos bichinhos voarem. E cadê a cauda colorida? Foi castigo. Deus não aprecia o mal feito. Segundo tio Miro, foi assim que surgiu o peru, feio de dar dó e não voa. Meus leitores e minhas leitoras, entre Darwin e tio Miro, a versão do meu tio é mais interessante. Fico com ela.