De perto, todo mundo é diferente, ou seja, é igual ao que é, realmente. De longe, as aparências costumam enganar, as virtudes e os víci...

Susan Sontag, de perto

susan sontag
De perto, todo mundo é diferente, ou seja, é igual ao que é, realmente. De longe, as aparências costumam enganar, as virtudes e os vícios eventuais se exacerbam ao olhar alheio, talvez menos atento, e aí a imagem formada pode não coincidir com a realidade. Mas de perto a história é outra. A escritora nova-iorquina Sigrid Nunez, aos vinte e poucos anos, teve a oportunidade de conviver com Susan Sontag, inclusive morando em sua casa, por um bom período. Era uma espécie de assistente (inicialmente, datilografava a correspondência) e depois tornou-se namorada do filho da ensaísta; mas logo se estabeleceu entre as duas uma relação de amizade, o que lhe permitiu observar e penetrar
Sigrid Nunez
a intimidade doméstica da “patroa”. Era o ano de 1976 e a intelectual já renomada se recuperava de uma mastectomia radical.

Trinta e cinco anos após essa convivência, em 2011, Nunez publicou um íntimo e saboroso perfil de Sontag, baseado em suas memórias daqueles tempos já distantes, perfil este que, de certa forma, como costuma acontecer nesses casos, ressuscitou para o grande público a complexa e não raro difícil persona da ensaísta, falecida em 28 de dezembro de 2004. Agora (2023) saiu a edição brasileira desse livro pela Editora Instante e com a assinatura da tradutora Carla Fortino. Vejamos, pois, alguns traços da célebre perfilada, cuja imagem física a partir de certo momento passou a ser identificada com uma personalíssima mecha de cabelos brancos, adequadamente reproduzida na capa do pequeno volume.

A primeira coisa que se pode dizer sobre Susan Sontag é que ela não era uma pessoa “fácil”, em nenhum aspecto. Temperamento instável e forte, não se preocupava em agradar ninguém, dizendo o que pensava e fazendo o que queria (dentro do possível), muitas vezes com algum prejuízo para sua carreira literária e acadêmica, geralmente povoada, como se sabe, de incontáveis ególatras muito sensíveis. Sua infância foi marcada pela indiferença da mãe e ausência do pai, fatos que costumam deixar marcas profundas nas pessoas, quaisquer que sejam as trajetórias pessoais e
Susan Sontag, em 1966
profissionais posteriores. Como disse nosso sábio do Cosme Velho, antes de Freud, “o menino é o pai do homem” — e é mesmo, sabemos.

Muito reconhecida como ensaísta, o que Sontag queria mesmo era ser romancista, mas essa não era propriamente a sua praia. Escreveu, sim, algumas obras de ficção, todavia não conseguiu ser “grande” nesse gênero. Seu romance O amante do vulcão repercutiu favoravelmente, mas não logrou fazê-la reconhecida como desejava. Seu forte mesmo foram os ensaios (Contra a Interpretação, A vontade radical, Sob o signo de Saturno, Questão de ênfase, Ensaios sobre a fotografia e A doença como metáfora, entre outros), área onde indiscutivelmente se firmou como uma das mais renomadas intelectuais da segunda metade do século XX.

Era feminista, sim, mas ao seu modo, como em tudo que fazia, aliás. Segundo Nunez, para ela, “a companhia de mulheres até mesmo muito inteligentes não era, em geral, tão interessante quanto a de homens inteligentes”. Nas pessoas, a inteligência e o talento a seduziam mais que qualquer outra coisa, inclusive a beleza física. Só isso pode explicar o breve romance que manteve com o poeta russo (naturalizado estadunidense) Joseph Brodsky, ganhador do Nobel de Literatura de 1987. O escritor era “precocemente envelhecido por conta do tabagismo e de problemas cardíacos, careca, faltavam-lhe dentes, tinha uma barriga enorme e usava as mesmas roupas largas e sujas todos os dias”. Veja só. Sua bissexualidade era notória, o que não surpreende em alguém tão avessa às convenções.

susan sontag
Joseph Brodsky e Susan Sontag, em 1979 J. Kremmenz
Literariamente, tinha suas exigências. “Simplesmente não conseguia se emocionar com um escritor que ‘escreve da mesma maneira como fala’”. Apreciava Italo Calvino, Peter Handke, Jorge Luis Borges e W. G. Sebald, por exemplo. Não gostava muito de lecionar, pois essa atividade representava um emprego, e “aceitar qualquer emprego era humilhante para ela”. Também achava humilhante pegar emprestado um livro numa biblioteca e usar transporte público. Idiossincrasias pitorescas. Valorizava sobretudo a liberdade, mesmo que com o eventual sacrifício da segurança. Era essencialmente rebelde, libertária e não raro transgressora.

Susan Sontag, em 1981
Para a biógrafa, ela se levava muito a sério. E se ressentia quando não a levavam a sério suficientemente. Outros a achavam desprovida de humor, o que prova que nem sempre se esforçava por ser simpática. Gostava de elogio e de reconhecimento, mas não à maneira dos idiotas vaidosos: sua vaidade era de ordem intelectual e não mundana. Não cultivava a reclusão nem gostava do campo. Seu apartamento em Nova York era um entra-e-sai permanente de pessoas, uma espécie de acampamento aberto aos amigos. E havia nela uma obsessão em ser ativa: estava sempre a fazer algo, fosse o que fosse. Contemplação, pelo visto, não era com ela. Para uma pensadora, esta era certamente uma característica singular.

Tinha inimigos, é claro, como toda pessoa afirmativa e corajosa. Sobre isso, Nunez confessa: “ às vezes parecia que Susan tinha mais inimigos do que qualquer outra pessoa que já conheci”. Não era de estranhar em alguém que certa vez denunciou o comunismo como, essencialmente, uma variante do fascismo. O troco raivoso dos ofendidos veio na hora, como sói acontecer.

Susan Sontag (1933—2004)
Sua morte relativamente precoce não contou com a paz dos resignados. Esse inconformismo lhe amargou os dias finais e a vida dos que lhe estavam próximos à época. Quanto a isso, pode-se dizer que ela morreu valentemente como viveu, ou seja, sem aceitar nenhuma imposição. Morreu aos 71 anos, no auge de seus talentos. Tinha ainda muito a produzir, provavelmente.

O deleitoso livro de Sigrid Nunez é, sem dúvida, uma excelente introdução à vida e à obra de Susan Sontag, mulher poderosa e interessante, sem dúvida. Merece ser lido, portanto.


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