Qual a relação entre as palavras quente, caldo e calor, que intitulam este artigo? À primeira vista, alguns dirão que entre quente e calor existe uma relação semântica de sensação térmica. Já com relação a caldo, dificilmente alguém verá qualquer associação com as anteriores, tendo em vista que o mais comum é que se relacione o termo a um sumo, como o saboroso caldo de cana.
Para início de conversa, direi que as três palavras guardam entre si mais do que uma relação semântica: elas provêm da mesma raiz etimológica, estando, portanto, as três associadas à ideia de calor. O mais difícil é perceber essa concepção na palavra caldo. Comecemos por ela. Caldo provém de um adjetivo latino de primeira classe, calĭdus (m), calĭda (f), calĭdum (n), que resulta tanto na forma erudita e poética cálido, associada à sensualidade e ao erotismo dos beijos ou das cenas tórridas, quanto resulta em caldo, o sumo extraído de alguma coisa, como o já referido caldo de cana. Devido ao fato de que, quando espremida a cana, dela resulta um sumo quente. A palavra, a mesma para o italiano, caldo, significando quente, chega, por sua vez, ao francês com algumas modificações próprias àquela língua, resultando em chaud.
Cálido ou caldo é termo oriundo do verbo calĕo, calēre (estar quente, fazer calor). É do radical do particípio futuro, calitūrus, ou de um suposto supino, calĭtum, que provém calĭtus, de que se origina calĭdus, cujo sentido, conforme já vimos, é quente. Da mesma raiz cal- provém calŏr, calōris, em latim, com significação óbvia.
De onde vem, então, o termo quente, se o radical calit- (calĭtum)/calid- (calĭdus) se origina da raiz cal- (calĕo, calŏr) e não aparenta qualquer relação com o radical ou a raiz de quente? O particípio presente do verbo calĕo, calēre é calens, calentis, um adjetivo verbal, como de resto todo particípio. Na passagem do latim para o português, o caso acusativo, seja no singular, seja no plural, tem grande importância por ser o originador, em português, do léxico proveniente do latim, chamado apropriadamente de caso lexicogênico.
O acusativo singular de calens, seja no masculino, seja no feminino, é calentem, assim como seu acusativo plural é calentes. A partir de calentem, opera-se o processo de perda do fonema final (apócope), que resulta em calente, forma usada no galego-português, língua atestada a partir do século XIII, momento em que começa também a separação gradativa entre as duas que a originaram. De calente, origina-se caliente em espanhol. Com o desmembramento entre o galego e o português, o processo de acomodação fonético continua e resulta, incialmente, em caente, com a perda do /l/ intervocálico (síncope), resultando em caente. A prolação do português, já dissociada daquela do galego, terminou por proceder uma metafonia, de que se originou queente. A partir daí, naturalmente houve uma acomodação fonética, proveniente de uma fusão de vogais iguais (crase), a fim de evitar o hiato. O resultado final, sem trocadilhos, foi quente. Ilustremos:
calentem > calente > caente > queente > quente
A língua é cheia de armadilhas e seduções como se pode ver. Às vezes, palavras que aparentemente são díspares, guardam entre si uma relação etimológica, conforme vimos acima. Outras vezes, palavras que aparentam ser de uma mesma raiz ou de um mesmo radical, a exemplo de coma (verbo), coma (cabeleira), coma (estado de perda total ou parcial da consciência) e coma (vírgula ou sinal musical de pausa), são totalmente estranhas umas às outras.
Mas este é um assunto a que voltaremos em outra oportunidade.