Tenho acompanhado, eventualmente, uma ou outra repercussão noticiosa da morte de astros, ou estrelas globais, com o pesar, somente, d...

Quando João voava

novela saramandaia
Tenho acompanhado, eventualmente, uma ou outra repercussão noticiosa da morte de astros, ou estrelas globais, com o pesar, somente, de quem lamenta algo penoso, mas plausível. Isto é, sem o sentimento de grande perda expresso por todos os que deles e delas se fizeram mais próximos e mais íntimos em razão de tê-los a poucos passos do sofá doméstico, no transcurso habitual das novelas de agora.

Preciso confessar que não vi uma cena sequer de “Velho Chico”, apesar do elenco que, ainda por cima, abrigava, sete anos atrás, os conterrâneos Zezita Matos e Everaldo Pontes, filhos de Seu Nequinho, amigo dos meus pais,
no Pilar da minha infância. Como eu, eles advêm, também, de uma família de comerciantes. A padaria do velho Juca situava-se na calçada oposta à da mercearia do pai de Everaldo e Zezita, térreo de um sobrado invadido pelo cangaceiro Antônio Silvino, antes da chegada da segunda década de 1900, coisa de 1914, por aí assim.

Impressionantes esses dois irmãos. Ambos saíram do mesmo e modesto ninho, perto de 1960, para o ambiente onde o teatro, o cinema e a televisão hoje acolhem e consagram, merecidamente, em escala nacional, as suas melhores expressões. Culpa das cacimbas do Rio Paraíba. Aquelas águas fazem milagres. Perguntemos a Zé Lins.

O fato é que perdi a vontade de ver novelas desde a extinção do Núcleo das Dez, da velha Globo. Nada, acho eu, se compara, hoje em dia, às tramas, direções, propostas e propósitos contidos nos enredos de “O Bem-Amado”, “O Espigão”, “Gabriela” (edição de 1975), ou “Saramandaia”, para ficarmos nos melhores exemplos. Esta última conteve 172 capítulos, bem no padrão de outros folhetins do mesmo Núcleo, todos longos, demorados, arrastados por oito, dez meses.

novela saramandaia
Imagens: O.G. Memória
“Saramandaia” parecia extraída dos romances de cordel. Impossível esquecer aquela Marcina Moreira fogosa e febril, queimando, literalmente, em desejos. O colchão fumegava e era preciso atirar água ao fogo da moça, providência sem a qual ela queimaria até a morte.

Ah, o bom e velho dramaturgo Dias Gomes, que falta faz. Conta-se que foi ele uma das causas do rompimento de Roberto Marinho com o então ministro da Justiça Armando Falcão, nos tempos difíceis da ditadura militar.
Falcão criticava o emprego oferecido pela Globo a Dias Gomes.

“Cuide dos seus comunistas que eu cuido dos meus”, respondeu, ao que se conta, o homem mais poderoso do Brasil ao ministro do presidente Ernesto Geisel. Mas não tão poderoso quanto assim foi, em seu tempo, o paraibano Chateaubriand, matuto de Umbuzeiro, criador da maior corporação da história da imprensa brasileira: em seu auge, mais de cem empresas, somados os jornais espalhados pelo País, as revistas e as emissoras de rádio e tevê. Isso incluía as icônicas O CRUZEIRO (semanário que vendia 1 milhão de exemplares a um Brasil com 50 milhões de habitantes) e as pioneiras Rádio e TV Tupi, a primeira da América Latina, neste último caso. Na Paraíba, os Diários e Emissoras Associados detiveram os Jornais O Norte e Diário da Borborema (os mais influentes por longo tempo), a rádio Borborema, a Cariri e a FM O Norte, além das TVs O Norte e Borborema. Esta, localizada em Campina Grande, foi a primeira do Estado.

Voltemos, porém, a “Saramandaia”, tema dessa nossa conversa. Ali, o sisudo e moralista Professor Aristóbulo Camargo (na pele do ator Ary Fontoura) virava lobisomem em noites de lua cheia para o encantamento da rapariga Risoleta (Dina Sfat).


Quando zangado, o velho Zico Rosado (Castro Gonzaga) soltava formigas pelo nariz. Ah, sim: Rafael de Carvalho (olha outro paraibano, aí, gente) fazia Seu Cazuza Moreira, um sujeito cujo coração saía pela boca nos momentos de aperreio. E era preciso empurrá-lo de volta a seu lugar.

A gordíssima Dona Redonda (Wilza Carla) não conseguia parar de comer, estourou no último capítulo e levou consigo metade de um quarteirão de Bole-Bole, a cidadezinha da zona canavieira cujo nome o envergonhado prefeito Lua Viana (Antonio Fagundes) queria trocar por Saramandaia.


Assim também o queria seu irmão mais velho João Gibão (Juca de Oliveira), o tímido namorado da fogosa Marcina, a quem Sônia Braga emprestava corpo e alma. A corcunda enorme do moço, escondida sob a camisa que em nenhum momento retirava, teria explicação no capítulo final: aquele em que, finalmente despido, exibiu um par de asas esplendoroso, antes de alçar voo diante de um povo estupefato.

E as situações e diálogos do transcurso da novela a dissimularem a insatisfação com o triste momento político? E a música “Pavão Misterioso” do cearense Ednardo executada quando da abertura e fechamento de cada capítulo?


Eu ia esquecendo de algumas participações especiais. Francisco Cuoco, por exemplo, vestiu a pele de Tiradentes, o inconfidente mineiro, de passagem por Bole-Bole. Desculpem, por Saramandaia. Peço perdão aos mais jovens. Mas vocês não sabem o que é novela.


COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também