A herança é a maneira mais pertinente
de formar uma biblioteca
(Walter Benjamin, Desempacotando minha biblioteca)
de formar uma biblioteca
(Walter Benjamin, Desempacotando minha biblioteca)
À pergunta que alguém me fez recentemente diante das minhas estantes cheias de livros - A senhora já leu todos esses livros? - dei a seguinte resposta: li muitos desses livros para escrever textos, outros fiz apenas a leitura de determinados capítulos e há aqueles que permanecem fechados aguardando a hora da leitura. Foi essa pergunta que me conduziu até ao ensaio de Walter Benjamin, Desempacotando minha biblioteca. Um discurso sobre o colecionador, inserido no livro Rua de mão única. Ele conta que está desempacotando os livros de sua biblioteca e afloram muitos pensamentos e lembranças.
Houve um tempo para Benjamin que nenhum livro podia ingressar na sua estante sem a confirmação de que fora feita a leitura antes, assim o que guardava não constituía uma biblioteca, eram poucos livros, depois resolveu comprar tudo quanto lhe podia interessar e começou a construir uma biblioteca verdadeira, passou a se considerar um colecionador de livros. Suas compras mais memoráveis aconteceram durante viagens, como “transeunte” e afirma:
“Quantas cidades não se revelaram para mim nas caminhadas que fiz à conquista de livros!”
Uma das aquisições que rememora com afetividade foi a compra de um livro infantil de Albert Ludwig Grimm e publicado em Grimma, na Turíngia (Alemanha). Desse mesmo autor, procedia um livro de fábulas com dezesseis ilustrações, um trabalho primoroso do grande ilustrador alemão Lyser. Do ilustrador, descobriu outro livro – Contos de Lina, uma obra pouco conhecida.
Benjamin, embora não fosse rico, gostava de participar de leilões de obras raras, certa vez, por felicidade do destino, conseguiu comprar um exemplar de Pele de Onagro, um livro de Balzac há muito desejado. A compra do livro exigiu depois uma ida à casa de penhores para saldar a dívida. E declara:“Ainda hoje Pele de Onagro se destaca das longas filas de volumes franceses de minha biblioteca como o monumento da minha experiência mais emocionante em leilões”.
A tarefa de desempacotar livros começara ao meio-dia, já era meia-noite e ainda restavam alguns caixotes. No meio de livros encadernados, encontrou dois álbuns de figurinhas que a mãe havia colado quando era bem pequeno e que herdou como lembrança da infância. Eram as sementes de uma coleção de livros infantis e vem a reflexão sobre o que guardamos no meio de livros – folhetos, prospectos, fac-símiles de manuscritos ou cópias datilografadas e revistas, tudo isso pode aparecer em uma biblioteca.
Em frente à última caixa de livros, muito depois de meia-noite, ocorreram outras lembranças, lembranças das cidades por onde passou: Riga, Nápoles, Munique, Danzigue, Moscou, Florença, Basileia, Paris. Recordações dos locais onde adquirira os livros, da sua toca de estudante em Munique com o quarto cheio de livros, do seu quarto em Berna e do seu quarto de criança, donde restaram apenas quatro ou cinco livros dessa fase pueril.
Por fim, satisfeito, ao terminar a tarefa de arrumar os livros na biblioteca, bendiz aquele que passa a vida no meio dos livros com essas palavras proféticas: “Bem-aventurado o colecionador!”.
Walter Benjamin também colecionava telas de artistas famosos, uma delas foi Angelus Novus, de Paul Klee. Foi o primeiro trabalho de Klee da coleção de Benjamin, depois adquiriu outros, mas este primeiro recebeu uma atenção especial do filósofo. Vale a pena saber um pouco da história dessa pintura em nanquim, com tinta a óleo sobre papel que acompanhou Benjamin por vários anos. A aquisição ocorreu em 1920 e só se separou dessa obra em 1933 ao fugir do nazismo, mas logo conseguiu reavê-la. Para o filósofo, o anjo pode ser comparado ao Anjo da história e passa a imagem de “mensageiro”.
Os anjos sempre foram representados como seres divinos, espirituais, com semblantes tranquilos. O anjo da obra de Klee é bem diferente, revela um ar de espanto, olhos esbugalhados, boca escancarada e as asas abertas. Tem um olhar fixo em um ponto, é um desenho que impressiona quem o contempla.
Quando fugiu da Alemanha por ser judeu (1933), com medo de perder esta obra de arte, Benjamin deixou o quadro com um amigo, em 1935 retornou a seu antigo dono e com ele permaneceu até junho de 1940, ano da sua morte.
Há um detalhe sobre o destino desse trabalho de Klee. Antes de deixar a capital francesa, onde se encontrava refugiado, Benjamin retirou o desenho da moldura, colocou-o numa mala junto com seus escritos, queria salvá-lo da catástrofe. Coube a Adorno ser depositário dessa preciosidade que hoje se encontra no Museu de Israel. Para chegar até a esse museu um longo caminho foi percorrido.