Propondo-se a uma arqueologia da noite, Helder nos conduz poeticamente a um mergulho no escuro de que nos constituímos e que é a própria luminosidade em sua força mais intensa. A noite remete à tragicidade própria da existência, à questão do nada, do abismo no qual estamos suspensos, como finitos que somos, mas do qual fugimos, perdidos na agitação incessante e superficial da vida pública, impessoal.
Remete, do mesmo modo, ao inconsciente, às minudências da vida secreta que repousa no fundo de cada um de nós e sobre a qual nenhum poder, nenhuma intervenção ou controle consciente é possível. Arqueologia soa como um passeio à arkhé, à origem, ao que ocorre nesse nível obscuro da noite que somos e que a arte, enquanto poiesis, ação criadora, apreende e revela em resplandecência e brilho. A discrição, que qualifica a arqueologia no título - discreta - alude ao comedimento, ao pudor próprio dos que sabem e reconhecem o caráter inesgotável e plural das forças vitais em jogo no turbilhão do existir.
A convocação de Helder para esboçar uma apresentação do seu livro pegou-me de surpresa. Estou certa de que, nos seus mais profundos alcances, outros fariam isso bem melhor do que eu, poetas ou críticos experientes. A princípio reticente, acabei aceitando o encargo como um desafio; afinal, pela poesia e com a poesia a alma viaja e se arrisca, se compromete e se reabilita, se renova e se aviva . Entregar-se ao seu feitiço e fascínio é sempre fazer uma irrecusável aprendizagem da coragem, da qual dependerá a posterior inteireza do espírito, a escolha que demarcará a nossa vida, determinando-a para uma postura condescendente e submissa ou para a enérgica, vigorosa e pujante liberdade.
Não tenho dúvidas de que nesse empenho, me arrisco e me confronto com um perigo. Mas risco e perigo, aqui, não justificam medo, retrocessos, desistências. É no risco que está salvação, repete “por pura alegria de viver” Clarice Lispector, numa coletânea de artigos intitulada A Descoberta do Mundo; sem ele, sem o risco, continua ela, a vida não vale a pena. Quanto ao perigo, acolho os ensinamentos de um velho pensador alemão da Floresta Negra, para quem são três os perigos que ameaçam o pensar. Um deles, o mau perigo, é o pensar mesmo, que deve pensar contra si mas só raramente consegue; não pensa contra a projeção de si mesmo, impedindo desse modo que as coisas sejam no que são.
Outro perigo é o filosofar, que é de fato o pior deles, porque faz o homem se prender à rigidez da racionalidade lógica e se crer um falso deus, com autoridade para dizer a última e única verdade. O terceiro perigo, entretanto, esse a que me arrisco sem amarras, bom perigo e por isso benfazejo, é a vizinhança do poeta que canta, que está em permanente proximidade com a compreensibilidade de tudo que é, ouvindo o apelo do existir, dizendo o que se mostra, o que se ilumina e refletindo a condição mesma da existência como lugar de revelação.
Helder realiza sua discreta e vigorosa escavação arqueológica realçando o mérito do poetar: deparar-se com o inexprimível, aguardando, sem pressa, ser solicitado por algo para trazê-lo à luz, pronunciando o que se anuncia, chamando nossa atenção para o simbólico que nos toca, nos abarca e nos concerne. Com anunciada discrição, mergulha na noite que somos e nos oferece, com sua arqueologia, uma experiência da verdade, concebida não como universalidade absoluta e imóvel, mas como criação de sentido, aberta para possibilidades que brotam espontaneamente do mundo.
Aqui vale lembrar Homero, que chama nossa atenção para o simbólico, para o ausente no presente, para o mistério do sentido, acessível apenas ao vidente, que tem o dom de penetrar no aparente.
“Entre eles se levantou então Calcas, filho de Testor, de longe o melhor dos adivinhos. Todas as coisas ele sabia: as que são, as que serão e as que já foram.” Calcas era o vidente, que não era um delirante, um sonhador entregue a devaneios. Pelo contrário. É alguém, como o poeta, encantado, extasiado, entusiasmado, enlevado, embevecido, seduzido pelo existir, colocado por isso em uma dimensão diferente daquela dos outros homens imersos no cotidiano.
Nesse livro, iluminando e decifrando o invisível, com sensibilidade e talento, Helder Moura nos alegra e presenteia, permitindo que a vida se mostre no que é, conectando-nos com a nossa humanidade. Mostra, com a sua poesia, que saber não significa buscar certezas e seguranças, restringindo a visão ao plano dos fatos, das descrições particulares. Isso apenas mantém um escambo frio entre o homem e o homem, o homem e as coisas.
Saber é cumprir, como ele, nosso destino de intérpretes, de criadores de mundos; é fazer, cada um, sem medo, à maneira dos poetas, a dolorosa, difícil, surpreendente, extraordinária e livre experiência da verdade. Sua noite nos alcança como a noite da pintura de Pedro Américo, paraibano de Areia; como no quadro famoso do poeta das tintas, vem também ela, pintada com letras, acompanhada dos gênios do estudo e do amor.
Tomo por fim, emprestado, o martelo de Nietzsche. Dirijo-me com ele à valorização socrática do mundo lógico racional, responsável pela cisão entre verdade e mentira, e convoco o leitor a um gesto lúdico, com sabor de jogo e divertimento: experimentar com a poesia o prazeroso caminho da mentira, da mentira estética, em busca da verdade.