Nunca executara aquela cantiga do bom ouvir em planícies nem desertos. Porque o cantar já não lhe apetecia ou o uivo imenso de um lobo ...

O velho lavrador

cronica paraibana velhice solidao
Nunca executara aquela cantiga do bom ouvir em planícies nem desertos. Porque o cantar já não lhe apetecia ou o uivo imenso de um lobo isolado em suas meditações impedia imitar o passarinho engaiolado perto do quarto. O quarto onde curtia dores martelando na bigorna de seus ferimentos. Tanto trabalhara no roçado, as mãos inchadas, os pés rachados, a face riscada de rugas pela inclemência do sol. Escutava, ao longe, a sanfona tocada pelo compadre, o fole puxando o forró que ficara famoso nos fins de semana.

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Com a mulherzinha xoxa, diminuta em tamanho, porém trabalhadeira, conseguira um par de filhos, uma menina que era tudo da mãe e um menino talhado nas feições e no corpo afilado, magro do pai. Ambos continuavam o mister dele, aquele mesmo cricri em fuçar as terras com a enxada na nesga de terreno sadio que conseguira adquirir logo que chegara de longínquas paragens.

Havia um halo de monotonia, de repetição, um ritual do plantio que marcava a vida de todos. O sininho rouco de tão velho chamava para alguma missa, quando o padre de uma cidadezinha próxima, puxando seu jipe pelas estradas perfuradas e mal conservadas eram rotas incertas com abismos aqui, ali. Por isso, poucos se aventuravam a trafegar por aquela rodovia, antiga estrada de rodagem, de sorte que o pequeno refúgio do homem inutilizado, entregue ao cansaço, cheio de mazelas e de vontade de cantar a lembrança de seus dias verdes, secava, silencioso como o pé de manga que ele avistava pela janela do quartinho onde repousava.

Ligava o rádio transistor e escutava as notícias e as músicas. Gostava muito dos repentistas repinicando as violas inspiradas nos suspiros finais dos dias e chegava a chorar emocionado.
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Era um homem de alma serena apinhada de volteios diversos, alegrias e tristezas, crente em Deus. O lavrador ficava escutando os sermões do vigário visitante, as palavras de conforto que lhe entravam nas entranhas repletas de recordações e recordava a primeira comunhão feita em branca roupa. Hoje, coitado, não podia assistir a celebração ao vivo, vendo as velas acesas, a imagem dos santos, os amigos que foram desaparecendo no galope da temporalidade. Nem dobrar os joelhos na hora da elevação da hóstia consagrada.

Recebia poucas visitas: o padre vinha almoçar com ele e lhe deixava alguns trocados de ânimo; o velho palhaço que percorrera o mundo, a contar piadas para arrancar um sorriso morno do homem doente; o amigo de longas datas, desde menino, que fizera uma aposta em vir dizer, após o extremo desenlace, como era a outra vida. A mulherzinha xoxa preparava o café donzelo e trazia para animar aquelas reuniões nas tardes domingueiras. O lavrador doente criava alma nova, assoviava, entornava o copo fumegando, abria sua alegria. Era uma felicidade ingênua, curta, fatiada entre ele e os que o visitavam.

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