Neste 12 de outubro de 2023 o escritor Fernando Sabino, se vivo fosse, estaria completando cem anos de nascimento. Em condições normais, imagino que a data talvez viesse a ser não apenas lembrada mas também celebrada nos meios culturais brasileiros, dada a importância do mineiro nas letras nacionais. Acontece que, como bem sabem alguns, as condições desse centenário não são propriamente “normais”, dada a catástrofe literária que se abateu sobre o autor com a publicação, em 1991, de seu livro Zélia, uma paixão (Editora Record, Rio de Janeiro, 1991), cujo imaginoso subtítulo era “Romance da figura mais surpreendente de nossa vida política nos últimos tempos”. Essa figura, que na verdade não tinha nem tem nada de romanesca, é a ex-ministra da Economia no governo de Fernando Collor, Zélia Cardoso de Mello, de triste memória, ressalte-se.
Essa senhora, que há muitos anos exilou-se nos EUA, provavelmente porque não tinha mais condições morais de viver no Brasil, teve a “brilhante” ideia de combater a alta inflação da época em que dirigiu a economia do país simplesmente retirando de circulação, através de um confisco, a maior parte do dinheiro de pessoas físicas e jurídicas. Seu “original” pensamento econômico deve ter sido: sem dinheiro, as pessoas não gastam; se as pessoas não gastam, os preços caem; se os preços caem, a inflação cede. Ou seja: a velha lei da oferta e da procura aplicada à força, estuprando-se o manhoso funcionamento do mercado através de decreto. Isso nunca deu certo, em lugar nenhum do mundo, que o diga a extinta URSS. Da noite para o dia, todos se viram sem suas poupanças e seus investimentos financeiros, a maioria da população igualada na temporária pobreza, à qual muitos não sobreviveram, literalmente. Quanto a isso, dona Zélia foi de fato surpreendente, pois surpreendeu, como ninguém até então, uma nação inteira docilmente esbulhada de repente.
Enquanto geria uma economia privada de seu lubrificante natural, o dinheiro circulante, ela encontrou tempo para iniciar um improvável namoro com um colega de ministério ainda mais improvável: o então ministro da Justiça, Bernardo Cabral, cidadão sem quaisquer atrativos físicos, casado e responsável exatamente pela pasta menos adequada para o cometimento de um escancarado adultério. Essa a tal “paixão” que consta do título do livro escrito posteriormente por Sabino, sabe-se lá porquê, uma mistura de realidade e ficção, para ser lida preferencialmente ao som bordelesco de “Besame mucho”, que vendeu mais de duzentos mil exemplares, foi unanimemente deplorado pela crítica e relegou o surpreso autor ao mais negro e duradouro ostracismo literário de que se tem notícia no Brasil em todos os tempos. Para a intelectualidade, Sabino foi, na linguagem atual, simplesmente “cancelado”.
Aos mais novos, uma informação importante: o confisco de dona Zélia deu com os burros n’água, após arruinar a vida de milhões de brasileiros, a tal “paixão” arrefeceu rapidamente, diante da recusa de Cabral de se separar da esposa, e, na sequência, a ministra, face a tantos fracassos, foi demitida impiedosamente pelo presidente que já começava a ver os acenos do “impeachment” que o varreria da política por oito breves anos, sob acusação de corrupção. A economista, antes do definitivo autoexílio estadunidense, logrou atrair a improvável atenção do humorista Chico Anysio, com quem casou e teve filhos. Mulher mais uma vez surpreendente.
Pois após essa desgraceira toda, a surpresa maior: Fernando Sabino, experiente e respeitado escritor, deixa-se convencer a escrever um “romance” a partir dessa história no fundo banal e povoada por personagens também essencialmente banais. Um livro de certa forma oportunista. Para ela, uma conveniente oportunidade de apresentar-se ao público sob lentes menos desfavoráveis, mas para ele, do ponto de vista pessoal e literário, um empreendimento totalmente desnecessário - e mais ainda: desaconselhável. Esse um mistério até hoje não suficientemente esclarecido. O fato é que, a despeito da grande vendagem, a repercussão negativa do livro nos meios culturais foi tanta que Sabino recolheu-se ao lar, como se envergonhado ou arrependido, e de lá pouco saiu, até a morte.
Para alguns mais rigorosos, o escritor morreu literariamente quando publicou o tal romance. Outros, mais compreensivos, relativizaram o episódio, levando em conta a produção anterior do autor, notadamente seu louvado romance O encontro marcado, de 1956, sem falar nos diversos volumes de contos e de crônicas, gênero este em que ele notabilizou-se. Lembremo-nos que Sabino ganhou vários prêmios, inclusive o Jabuti e o Machado de Assis. Era – e é - um nome. E juntamente com seus conterrâneos Otto Lara Rezende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos formou um quarteto que marcou época em nossas letras. Alguns o consideram “um grande escritor menor”, mas isso é coisa dos críticos e acadêmicos, amantes dos rótulos e das classificações, nem sempre felizes.
Como bem frisou Joaquim Ferreira dos Santos em sua coluna de O Globo, esperemos que este centenário de nascimento sirva para ressuscitar o escritor importante que foi – e é – Fernando Sabino. Sua extensa obra está aí aguardando novas edições e novos estudos. É preciso que se veja Zélia (e o tal romance) como um mero e infeliz acidente em sua vida, assim como ela o foi na vida do país.