Acordou com uma sensação boa. Depois de décadas malhando na repartição, estava enfim aposentado. Até estranhou não ter que pular da cama, engolir rápido o café da manhã e enfrentar o congestionamento do trânsito. Quantas vezes não ficara exasperado ao volante, sentindo o coração bater com força ao ver que a fila de carros não andava e ele corria o risco de perder a hora.
Agora, ufa, tudo isso ficara para trás. Não seria mais escravo do tempo. De repente lhe ocorreu um gesto simbólico para traduzir essa liberdade: desvencilhar-se do relógio de pulso. Apanhou o velho Mido, que estava sobre a mesa de cabeceira, e o meteu embaixo de pijamas, cuecas, camisetas e o que mais havia numa gaveta da velha cômoda que há anos compunha o cenário do quarto.
Fez isso e tratou de viver. Ao acordar, partia para uma caminhada ao redor do quarteirão onde morava. Na volta tomava um banho lento antes de degustar o café da manhã. À tarde, depois de um cochilo (que também introduziu na sua rotina), ligava a televisão para ver uma dessas reprises com que os canais de TV costumam alimentar o ócio de aposentados como ele. À noite, deitava-se antes das dez.
Era outra vida, bem mais natural, por isso ele estranhou quando começou a sentir um desconforto estranho depois do café da manhã. Coisa leve, mas incômoda, que tendia a se prolongar. E o curioso é que não exagerava na alimentação. Comia o que sempre comera, evitando o máximo possível o que podia fazer mal: enlatados, frituras, as chamadas bombas calóricas.
A mulher então o aconselhou a procurar um médico. Ele de início hesitou, entre outras razões porque não aceitava pagar consulta se já gastava um dinheirão com o plano de saúde. Zuleide ponderou que, se os médicos cobravam pela consulta, era porque os planos pagavam pouco. Não era ele quem ia consertar isso.
Foram os dois juntos a um gastroenterologista. A mulher falou mais do que ele, pois nesse dia o empachamento estava intenso. Era terrível a sensação de querer arrotar e não poder. O médico foi escrupuloso nos exames; passou endoscopia, colonoscopia, pesquisa de bactérias, enfim, tudo que pudesse revelar a causa do mal-estar. Ele providenciou todos, e para surpresa do casal não havia sinal de doença. Nada que justificasse a disfagia e o excesso de gases.
A insistência daqueles sintomas sem causa começou a deprimi-lo. Aos poucos foi perdendo o ânimo para as caminhadas. Preferia ficar na cama até mais tarde, pois o café da manhã deflagrava o processo que se intensificava depois do almoço e se prolongava até o fim do dia. A mulher sugeriu que consultasse um psiquiatra; como os exames não tinham revelado nada, ele só podia estar com algum problema mental.
Psiquiatra? Não iria. Nunca fora ruim da cabeça, pelo contrário; na repartição elogiavam o seu bom senso e a paciência para lidar com situações difíceis. Chegara a aconselhar colegas que passavam por uma crise conjugal ou tinham problemas com os filhos. A lembrança da repartição o fez pensar no tempo em que tinha de acordar cedo para não perder a hora de assinar o ponto. A primeira coisa que fazia, mal abria os olhos, era olhar para a mesinha onde estava o velho Mido, que lhe ditava o ritmo do tempo e da vida. Lembrou-se de que o enterrara numa gaveta da cômoda e teve vontade de dar uma olhada nele.
Foi até o móvel e abriu a gaveta. Depois de remover vários pertences, deparou-se com a corrente prateada e o mostrador que lhe eram velhos conhecidos. Um detalhe chamou a atenção: o relógio estava parado. Nada justificava isso, pois tinha colocado pilhas novas pouco antes de guardá-lo naquele lugar. O mais curioso é que não apenas os ponteiros pararam, como a data no mostrador tinha se fixado em 7 de abril – justamente o dia em que o guardara ali.
Era supersticioso e viu na imagem do relógio parado uma espécie de símbolo da imobilidade do tempo, para não dizer da morte. Então resolveu dar corda. Mal tocou no objeto, viu que os ponteiros começaram a se mexer. Pareciam a imagem de um coração que se reanimava ao contato de um estímulo de que fora momentaneamente privado. Pegou o relógio, colocou-o sobre a mesa de cabeceira e se estendeu na cama.
O tique-taque, em vez de incomodá-lo, deu-lhe uma sensação de sincronia com alguma ordem superior. Uma espécie de vibração capaz de tirá-lo do tédio dos últimos dias. Imaginou que, quando acordasse, voltaria ao antigo ritmo. Sentiu-se como quem reencontra as balizas que lhe orientavam o caminho. Adormeceu com essa doce impressão, embora não tivesse ideia do que iria fazer no dia seguinte.