Por vezes o pouco contato, o distanciamento, a ausência do olhar, do tato, nos desperta a falsa impressão de que aquela pessoa não exerceu influência em nossa vida, não deixou algo impregnado, sequer uma mancha exígua, que possamos chamar de exemplo, que nos remeta à lusitana palavra saudade.
Foi assim com o meu pai. Coadjuvante, o que já seria um exagero, nos meus primeiros dias, nos meus primeiros passos e desacertos.
De origem síria e libanesa — por parte de pai e mãe —, respectivamente, ele sempre partia e me fazia sofrer na espera de sua volta.
Mas é em dias como estes últimos que estamos vivendo que eu me vejo atrelado aos meus mortos, às minhas origens.
Acho que foi essa ideia que me aproximou tanto do poeta espanhol Ángel Gonzalez, que me emocionou com o seu poema “Para que eu me chame Ángel González”, poema este que traduzi anteriormente:
Para que eu me chame Angel González,
para que meu ser pese sobre o solo,
foi necessário um amplo espaço
e um largo tempo:
homens de todo o mar e toda terra,
férteis ventres de mulheres, e corpos
e mais corpos, fundindo-se incessantes
em um novo corpo.
Solstícios e equinócios deslumbraram
com sua luz oscilante, seus múltiplos céus,
a viagem milenar de minha carne
vencendo os séculos e os ossos.
De sua passagem lenta e dolorosa
de sua fuga até o fim, sobrevivendo
naufrágios, agarrando-se
ao último suspiro dos mortos,
eu não sou mais que o resultado, o fruto,
o que tombou, podre, entre os restos;
este que vês aqui,
tão somente este:
um escombro tenaz, que resiste
a sua ruína, que luta contra o vento,
que avança por caminhos que não levam
a nenhum lugar. O êxito
de todos fracassos. A enlouquecida
força do desalento...
O que ficou de mais profundo em mim, do pouco que convivi com o meu pai, foi a história de sua família, de seu povo.
De meu bisavô, Elias, herdei o sobrenome forjado pelos seis filhos, para homenagear o pai que ficou para trás na Síria. Mudaram o sobrenome para manter a memória.
Meu avô, nascido no século XIX, foi o único que não migrou direto para o Brasil. Teve uma passagem pela Rússia, de onde fugiu durante a revolução Bolchevique de 1917. Penso que por ser de uma minoria cristã maronita deva ter se sentido inseguro.
Chegou ao Brasil, parece que após uma breve passagem pela Argentina. Casou com minha avó e teve o meu pai aos 74 anos de idade. Deixou para trás filhos que morreram nas guerras travadas nos anos 60.
O que meu pai herdou desse pai idoso que morreu quando ele tinha 14 anos?
Herdou a língua, um amuleto que trazia dizendo guardar um fragmento da Cruz de Jesus Cristo e uma reza em árabe usada para benzer as pessoas.
Não aprendi o árabe, apenas palavras básicas e palavrões que sempre fizeram sucesso entre os amigos. Não aprendi a reza, que, por tradição na família, e incentivado por minha mãe, tentei memorizar sem ser percebido pelo meu pai... Tenho certeza que ele tentou repetir inúmeras vezes, mas falhei em decorá-la. Aprendi cedo que eu tinha que “roubar” a prece do meu pai para ela não perder o poder de cura.
E o amuleto... O amuleto eu guardei e um dia coloquei sob um aparelho de raio X para ver se me mostrava o caminho da transcendência. Vi tecido sobre tecido, e nada mais.
Meu pai me ensinou muito, hoje eu sei. Mais que sobre ele e suas imperfeições como pai, ele me ensinou sobre um povo, sua união, sua fé, sua determinação, sua cultura.
Em minha casa tinha apenas uma revista e um disco antigo que meu pai guardava como lembrança da terra que nunca conheceu.
Tinha uma foto de pinheiro na revista, símbolo do Líbano; tinha a percussão no disco.
Guardo comigo as montanhas que não conheci e o som da lira e derbakes que busquei ouvir ao longo dos anos.
Guardo comigo o amor e a indignação que tem levado à morte tantos inocentes ao longo do último século.
Guardo o olhar que me fez homem e me chamou de filho de meu pai Oriente Médio e de minha mãe nordestina de origem sefardita. Este é o meu nome.
E ter um nome é um pertencimento.