OS INFLUXOS PERENES DA VOCAÇÃO MÉDICA
Toda carreira exige, é evidente, seja ela qual for, uma série de predicados daquele que pretenda exercê-la, para dar cabal desempenho às suas obrigações. Mas a medicina é, sem a menor dúvida, a que reclama, mais do que qualquer outra, maior soma de predicados específicos para bem desempenhá-la. Além disso, o seu exercício implica em dedicação plena, abnegação, desprendimento e espírito de sacrifício. Ao demais, deverá ainda o médico possuir sólidos conhecimentos básicos, técnica apurada, apego à investigação científica e amor ao próximo.
Trata-se, segundo Okinzic, “de uma profissão única, cuja nobreza deriva do seu próprio objeto: o de avaliar o homem que atende e assiste em sua opulência, mas particularmente na sua miséria, na complexidade de sua natureza e nas relações entrelaçadas do corpo e do espírito”.
A medicina tem sido, muitas vezes, comparada ao amor. Marañon, grande sábio e escritor espanhol, que muito se ocupou desse assunto, ponderou: “A vocação genuína, poderíamos dizer, ideal, é algo muito parecido com o amor. É, disse Pierre Termier, uma paixão de amor”. Portanto, uma paixão que tem as características do amor, a saber, a exclusividade do objeto amado e absoluto desinteresse em servi-lo. Nisso se distingue o amor dessa outra paixão, tão parecida, para o qual o nosso rico idioma tem a sua palavra específica “querer”. Querer- se, por exemplo, à uma mulher com aparência de amor, mas querê-la é aspirar possuí-la: paixão portanto, radicalmente interesseira; ao passo que o amor procura servir o objeto amado, sem o querer para si, para possuí-lo. O mais alto exemplo é o seguinte: “Ama-se, mas não se quer a Deus”.
“A medicina tem dois aspectos que se colocam no rol das atividades que exigem uma vocação de superior categoria, aquela que comparamos ao amor e que, portanto, requer atração intransferível para o seu objeto, espírito de sacrifício e atitudes específicas. Esses dois aspectos são: a prática gratuita e estranhável aos pobres (e quiçá, também àqueles que não o são), tantas vezes comparada ao sacerdócio, e a sua estreita aliança com a investigação científica pura. Assemelha-se ao primeiro no que tem, ou no que teoricamente deveria ter, ao exercício desinteressado da profissão militar e da advocacia. Mas, supera a ambas em sua iniludível necessidade de investigar, que tem o médico, o que é, no advogado e no militar, contigência muito acidental”.
O grande e inolvidável Miguel Couto sintetizou de forma admirável e concisa a vocação médica, ao dizer:
“A matrícula em um instituto de Medicina pode ser o fruto de um cálculo, de um sonho, de um palpite, e talvez de positiva vocação; mas o verdadeiro estudo da Medicina só se faz no hospital, de todos os modos, investigando, vendo, ouvindo, e parece que até respirando neste ambiente; assim como o verdadeiro amor da Medicina também só aqui nasce e cresce, à cabeceira dos doentes, quando a piedade pelo sofrimento nos invade o coração e dele se apodera, quando a luta entre a ciência e a moléstia nos empolga e toda a nossa alma vibra ante essa luta”.
“Aquele que for fechado a estas paixões, renuncie para logo ao exercício de uma arte em que há de ser um supérfluo, um vencido, um incrédulo; e, ao cabo, uma maldizente”. Silgerist, ao falar da vocação médica, assim se expressou: “De que natureza é, pois, o ideal médico? Quando analisado mais de perto, verifica-se ser ele constituído por dois componentes: Um eterno e imutável, consequente à própria essência da medicina. Mais essência da ação médica é a de socorrer ou, como dizia Paracelso – “A base da medicina é a amor”.
“Por conseguinte, o ideal médico deve consistir na vontade de socorrer, no amor ao próximo e no espírito de sacrifício. Em contrapartida, o outro componente varia conforme o tempo, porquanto cada época possui um ideal médico. Cada época exige e aguarda uma ação diferente do médico. Este segundo componente é determinado pela estrutura do ideal médico, e se confunde com a história da medicina”.