Ele é farmacêutico/bioquímico por formação acadêmica, graduado e pós-graduado. E foi durante muitos anos respeitado professor da UFPB em sua área de conhecimento. Certamente deve ter influído em sua vocação o fato de seu pai, Severino Cabral de Lucena, ter sido, no século passado, dono da farmácia de Araruna, um quase médico para a população da cidade e arredores, competente na arte de receitar e manipular medicamentos, bem como no acolhimento social em seu estabelecimento, convertido em incontornável e prestigiado centro comunitário da urbe. Por essa farmácia, desfilava a cidade diariamente, desde o modesto agricultor até as autoridades locais, e a tudo isso o menino Humberto prestava atenção, gravando espontaneamente em sua memória de futuro historiador os acontecimentos e personagens antigos e recentes de sua aldeia. Esse pai admirável e essa farmácia emblemática foram posteriormente reverenciados em seu livro Memória de uma farmácia – Subsídios para a História de Araruna, saboroso relato em que o insuspeitado escritor se revela.
A ciência, a docência e por fim a história. Esse o caminho profissional e humano do professor Humberto. Em tudo, a seriedade, o compromisso, a decência – e o principal, o permanente: o amor ao chão natal, à sua gente, às suas raízes. Amor que o fez decidir trabalhar silenciosamente para registrar em livros a história daquele lugar e de seus habitantes, única maneira de resgatar o passado, para trazê-lo ao presente e perpetuá-lo no futuro. Essa a sua obra em favor de sua terra, obra provavelmente maior e mais duradoura que as de tijolo e cimento, porque eterna. Daqui a cem, duzentos anos, os seus livros continuarão nas estantes particulares e nas bibliotecas, servindo de subsídio para os estudiosos de então, como costuma acontecer com os livros clássicos, que não morrem.
Podemos dizer, para usar a linguagem poética de Manuel Bandeira, que a farmácia de Seu Severino e toda a Araruna daquele tempo ficaram como o quarto demolido do poeta na Lapa carioca: suspensos no ar, intactos, na eternidade. Esse o poder da memória – e do afeto. Poder que se transforma em história quando alicerçado em pesquisa, em testemunhos e em documentos, esforço intelectual afinal materializado nos livros decorrentes. Maior homenagem à figura paterna e à terra de sua infância não poderia haver.
Quantos livros escreveu Humberto sobre Araruna! Vou listá-los só para que o leitor tenha uma ideia fidedigna de sua produção: Araruna – Anotações para sua história, O Velho Mercado de Araruna e seus Arredores, A Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Serra de Araruna, Da Lagoa da Serra à Barragem de Canafístula, As raízes do Ensino em Araruna e Outras histórias de Araruna, sem falar, claro, nas dezenas de artigos esparsos publicados em jornais e revistas. Por tudo isso, o filho de Seu Severino é, sem dúvida, o maior e o mais produtivo historiador de Araruna e um dos mais importantes de toda a Paraíba, razão porque tem merecida cadeira no Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
Como se vê pelos títulos de seus livros, o objeto de estudo do professor Humberto é o que se chama modernamente de “pequena história”. Não os grandes painéis, os quadros panorâmicos, mas os aspectos locais, pessoais, familiares e comunitários, as aparentes miudezas que retratam - sociológica e antropologicamente - o cenário maior, o universal da aldeia de que falou Tolstoi. Daí a farmácia paterna, o velho mercado público, a igreja, a escola e seus respectivos atores – os principais, os coadjuvantes e os anônimos -, reconstituindo, cada qual sob um ângulo e um aspecto, a aldeia como um todo, em toda sua diversidade humana, cultural, econômica e social da época. Tudo isso Humberto fez – e continua a fazer - por Araruna.
Mas deixei para destacar em separado um notável feito seu que também tem a ver com a sua terra, mas indiretamente: a ressurreição do grande poeta ararunense A. J. Pereira da Siva, primeiro paraibano a compor os quadros da Academia Brasileira de Letras, então totalmente esquecido pelos paraibanos, que, aliás, são mestres nessa avara arte do olvido. Negro, pobre e desmazelado, esse herói ainda hoje pouco lembrado saiu da pequenina aldeia serrana e, apenas com seu talento, tal qual um Machado de Assis, logrou sentar-se à mesa da ABL, que rejeitou explicitamente, em condições parecidas, um Lima Barreto. Não é pouca coisa, realmente, tanto antes como agora. Pois bem. O conterrâneo Humberto tomou para si a missão de resgatar Pereira da Silva e meteu as mãos à difícil obra. Onde encontrar subsídios sobre alguém praticamente anônimo aqui e além? Começou então na vasta biblioteca particular do doutor Maurílio de Almeida, também historiador, fino colecionador das raridades bibliográficas paraibanas e que não se negou a ajudar o pesquisador ararunense. Depois, seguiu para os arquivos da própria ABL, onde também encontrou boa vontade por parte de seus funcionários. E assim, aos poucos, e com grande perseverança, terminou por escrever o perfil do bardo paraibano, que certamente não pretende ser a biografia definitiva do escritor, mas que se constitui, pelo seu pioneirismo, em obra de referência indispensável a todos quantos desejarem estudar a pessoa e a obra de Pereira da Silva. Através do ilustre poeta compatrício, o historiador achou outra maneira – imperecível - de enaltecer e reverenciar o natalício chão comum.
O tempo tem passado para Humberto e para todos nós, e ele continua com Araruna no coração e no pensamento. Seus trabalhos históricos sobre a cidade amada é o seu legado pessoal e intelectual. Ainda acompanha toda notícia sobre a bucólica aldeia, como fez amorosamente desde sempre. Para os historiadores e estudiosos paraibanos, seu nome é sinônimo de Araruna. E assim continuará sendo pela posteridade, pois as pessoas e os autores passam, mas os livros não.