“Tentei expressar a alegria,
mas também a solidão e a melancolia
que se sente no alto das montanhas,
de onde se avistam grandes distâncias”
Delius
Delius
No romance A Sinfonia Pastoral, de André Gide, as belezas da Natureza são contadas à menina cega na tentativa de descrever com palavras o mundo e a vida que ela não enxerga. Como a audição se depura nos desprovidos da visão, seus ouvidos passaram a perceber tudo o que lhe era dito como se olhos fossem.
A garota cresceu escutando as impressões parafraseadas pelo pastor que dela cuidava, a ilustrar as belezas do mundo da forma como sentia e desejava que por ela fossem concebidas. Assim Gertrudes amadureceu e despertou para a vida, a partir de diálogos que pintavam as cores, o encanto das aves, das flores, e toda formosura que compõe as paisagens naturais.
É de se supor a dificuldade de alguém que nada enxerga para imaginar com exatidão, apenas a partir da palavra, a formidável diversidade de coisas que o mundo proporciona aos olhos saudáveis. Embora há quem com eles as enxergue, mas nem tão bem as veja.
As descrições do pastor Jacques, embaladas com o carinho e o cuidado que dispensava a Gertrudes, desde que se comoveu com o drama da situação em que a encontrou e decidiu acolhê-la, foram capazes de moldar sua imaginação com fidelidade. Pois além de partir do fisiológico, seu olhar era transmitido de alma para alma.
Entretanto, como escreveu André Gide, nenhuma definição, ainda que narrada com sinceras emoções, chegou perto do que a Sinfonia Pastoral de Beethoven contou a Gertrudes sobre as belezas da Natureza. O que ficou claro no olhar fixo pelo enlevo promovido na ouvinte arrebatada pelas cenas reproduzidas em música, como a da “chegada ao campo", "à beira de um regato", da "dança campestre", da “tempestade", e o canto da cotovia que precede a “ação de graças” entoada pelos pastores, em calmaria após o temporal.
Infelizmente, no romance de André Gide, ao vir a enxergar por meio de uma cirurgia, a moça cega se decepciona com o mundo que vê, tão diferente do que lhe havia sido ensinado por seu protetor. Ciúme, ódio, paixão doentia e outras fealdades não presentes nas imagens que carinhosa e sonoramente lhe chegaram, passaram-lhe outra ideia da realidade oculta. O que talvez até lhe deixasse arrependida de estar enxergando o que não escutou na Sinfonia Pastoral. Que paradoxo.
A capacidade com que notáveis compositores são dotados para transportar às partituras o que sentem e fazer com que o assunto chegue ao ouvinte, de maneira fiel ao que imaginaram, consolida-se como linguagem livre dos limites vernaculares que sectarizam a comunicação entre os povos. A música é recepcionada imaterialmente e, sem necessidade de intermediação alguma, transmite seus signos diretamente à intimidade de onde brotam as emoções. A liberdade com que exprime o que quer dizer, uma vez que as notas dos pentagramas se difundem em sons formalmente abstratos, torna a linguagem musical ainda mais rica de significados. Foi isso que Gertrudes “viu”, quando apenas ouviu o que está transcrito por Beethoven nas melodias da Pastoral .
Paisagem na Música
A compreensão da paisagem através da música foi consubstanciada brilhantemente em obras românticas, incidentais e impressionistas. No prelúdio do segundo ato, o italiano Umberto Giordano consegue criar uma congelante atmosfera, intensamente russa, onde se desenvolve a ardente paixão de sua ópera “Sibéria”.
Como nos referimos em outro texto, poucos louvores musicais foram tão magnificamente erguidos para celebrar a formosura das belezas naturais como a Sinfonia Alpina, de Richard Strauss. Ela é a síntese do encantamento diante da perfeição paisagística em seu estado original, transcrito para uma partitura absolutamente pictórica, ou mesmo “cinematográfica”, em que o autor projeta toda a magnitude dos alpes bávaros.
Na suíte orquestral “O Mar”, altas ondas cantam à deriva de uma manhã de verão, tal como descritas pelo próprio compositor britânico Frank Bridge: “brisas mornas a brincar sobre a extensa superfície de águas ao sol”.
Otorrino Respighi entoa em sua “trilogia romana” impressões visuais da Villa Borghese, do monte Janículo, da Via Appia, inseridas em “Os pinheiros de Roma” numa reconstrução ideográfica invocada por geniais campos de sonoridades .
Em um poema sinfônico, o músico Arnold Bax pincela os contornos do Castelo de Tintagel em universo sonoro pluriarticulado de sutilezas e bravuras tímbrico-dinâmicas, que se estendem da maré calma à preamar, com bela impressão do oceano a banhar as falésias da Cornualha, na Inglaterra. Outra exaltação à excelência da diversidade florestal foi modelada por Arnold Bax em sua peça sinfônica “A Floresta Feliz”, inspirada num poema em prosa do escritor teatral britânico Herbert Farjeon. Uma fantasia evocativa de ambiente rústico protagonizado por airosos camponeses e um sátiro, bem ao estilo do fauno que Debussy usou em seu bucólico “Prelude après midi d’un faune”.
A Finlândia, berço de origem épica, foi decantada em sagas mitológicas e fielmente retratada por Jean Sibelius. No poema sinfônico “Finlândia, Op. 26”, melodias em ebulição crescente sugerem as belas paisagens, assim como as lutas nacionais históricas de seu povo.
O compositor suíço Joseph Lauber costumava buscar inspiração para compor em retiros de verão pelos vales de Les Plans sur Bex, região localizada acima de Martigny, onde caminhava, escalava montanhas e conseguiu imprimir na suíte sinfônica, “Os Alpes”, uma visão panteísta dos Alpes Valdenses.
Na metade do século passado, o russo Boris Tchaikovsky dramatizou musicalmente, em uma suíte orquestral, o romance “A floresta murmurante”, do escritor conterrâneo Vladimir Korolenko (1853-1921), em que um personagem morador das matas é explorado por um déspota e cruel escudeiro. Seus lamentos são confessados com veemência no coração de uma grande floresta da Bielo Rússia, mesclando-se às veneráveis paisagens inscritas na música que com a mata “murmura” Pinheiros centenários erguem-se da partitura em melodias das quais emerge a visão romanceada publicada pela crítica: “ricas copas a se fecharem enfileiradas em clima pacífico e perfumado de resina, por entre caminhos bordados de samambaias brilhantes e pela grama verde nos cantos sombreados”. Em seguida, a música transcorre obstinada e conclui-se heróica e excruciante com a vingança do oprimido que enfim conquista a liberdade.
Já em 1984, Boris Tchaikovsky entoou os ventos uivantes da Sibéria no poema homônimo, para orquestra, com gélidas lufadas a soar ardorosamente nas cordas. Apesar da ênfase da declamação paisagística especificada no título, a obra também explora a alma interior, uma intenção característica do compositor.
Vários outros exemplos musicais se notabilizaram por esta capacidade de desnudar paisagens aos ouvidos. Assim tornaram a música capaz de devolver a visão a muitos que a perderam, e induzir os que enxergam a fechar os olhos para enxergar melhor o que escutam, cientes de que há muitas maneiras de contar uma história, narrar um fato, descrever uma cena, e compor romances sem palavras.
O Apóstolo da Natureza
Mas houve um compositor que fez desta proeza a marca principal de sua obra, a ponto de se tornar conhecido como “O Apóstolo da Natureza”: Frederick Theodore Albert Delius!
Nascido em Bradford (Yorkshire, Inglaterra) desde muito jovem demonstrou seu talento e inclinação para a música, atividade que não se inseria nos planos de sua próspera família de comerciantes, que nele enxergava um futuro sucessor nos negócios. De certa forma, o empenho de seu pai em prepará-lo para trabalhar nos empreendimentos mercantis afastou-o dos sonhos artísticos, fazendo com que Frederick Delius se dedicasse à música tardiamente.
Aos 22 anos, ele foi enviado para a Flórida, nos Estados Unidos, a fim de cuidar de uma grande plantação de laranjas da família, entretanto, a estratégia parece ter sido frustrada e até mesmo tê-lo inclinado a reforçar latentes tendências artísticas. Seus olhos se encantavam muito mais com as paisagens dos arredores de Jacksonville do que com os pragmáticos afazeres administrativos.
"Na Flórida, ao sentar e contemplar a natureza, aos poucos aprendi como deveria eventualmente me encontrar”, escreveu à época, e lá começou a dar asas à intuição para as primeiras composições. A influência afro-americana local despertou-lhe interesse por antigas canções dos escravos, que mais tarde exploraria nas variações compostas para grande orquestra, coral e barítono, que intitulou “Appalachia”, antigo nome indiano para a América do Norte.
Nesta obra, Delius resgata as impressões dos grandes pântanos que bordejam o rio Mississipi, as montanhas apalaches, a se refletirem em tons de saudosa melancolia sob estados de espírito de amor intenso pela Natureza e o prazer inato de cantar e dançar intimamente associados à vida da população negra de então. Tons que se sucederam igualmente presentes em sua ópera “Koanga” e na suíte “Flórida”, esta última marcada pelas lembranças das plantações de laranja, dos bosques que rodeavam a casa onde morou, em “Solano Grove”, às margens do Rio St. John e da exuberante vegetação de musgos, magnólias, palmeiras e ciprestes, de onde absorveu imagens e sons ainda desconhecidos pela maioria dos europeus.
A Casa de Delius, transformada em museu e ambiente para a prática musical.Hmdb
Quando estava escrevendo a biografia de Delius, a romancista e musicóloga norte-americana, Gloria Jahoda, visitou a casa de Delius e disse sobre o que viu em seu livro “A outra Flórida”: “Pinheiros agitavam-se em bosques úmidos, pica-paus voavam pelas copas das árvores, tudo isto se juntou às imagens de índios e gente nativa para surpreender a Europa com a música de Delius”.Foi, contudo, um período feliz de descobertas e empatia pelo local, muito bem impresso nas alegrias e alegorias da bela Suíte.
Embora breve na vida do compositor, este período americano foi altamente criativo e marcou o início de suas composições, às quais dedicou todo o tempo livre. Antes de retornar à Europa, Delius deixou a fazenda e se mudou para o estado da Virgínia onde teve aulas de música. Após breve passagem por Nova York, conseguiu o que sempre quis: estudar na Alemanha, precisamente no Conservatório de Leipzig, um dos mais proeminentes núcleos musicais europeus da época, e lá começou a ter seu talento conhecido e reconhecido.
A forte admiração pela música de Edvard Grieg, de quem se tornou amigo, promoveu grande afinidade com a Noruega, o que incentivou o notável compositor a intervir pessoalmente junto a seu pai para finalmente convencê-lo de suas grandes potencialidades e permitir-lhe seguir a carreira musical. Delius intensificou seu trabalho como compositor, passou a ser convidado para reger suas obras em outras cidades europeias e se estabeleceu na França, onde se casou e viveu predominantemente em Paris, com sua esposa, a reconhecida artista plástica, Jelka Rosen, e em Ville d’Avray, Grez-sur-Loing e Croissy-sur-Seine.
Nascida em Belgrado, descendente de artistas e músicos, a exemplo de seu avô, o grande pianista e compositor Ignaz Moscheles, Jelka foi sua companheira até o fim dos dias, nada fáceis na última década. A sintonia artística entre os dois se dava por afinidades com a literatura e a música, que emergiram desde que começaram a se encontrar em eventos dos quais participavam amigos notáveis como os compositores Gabriel Fauré, Maurice Ravel e Florent Schmitt, os artistas Auguste Rodin, Camille Claudel, Paul Gauguin, Henri Rousseau, Edvard Munch, principalmente ao descobrir interesses comuns pelas obras de Grieg e Nietzsche.
A empatia intelectual entre Delius e Jelka foi contributiva, sobretudo nas peças que incluem drama e poesia de autores comumente apreciados pelo casal, e presentes em muitas de suas obras como Walt Whitman, Henrik Ibsen, Paul Verlaine, Friedrich Nietzsche, William Shakespeare Alfred de Musset, May Morgan, William Ernest Henley, Jens Peter Jacobsen, Hans Christian Andersen, Holger Drachmann, Ludvig Detlef, Bjørnstjerne Bjørnson, John Olaf Paulsen, Theodor Kjerulf, Andreas Munch, Thomas Nashe, Ben Jonson, Alfred Tennyson, Aasmund Olavsson Vinje, Ernest Christopher Dowson, Percy Bysshe Shelley.
Entretanto, o grande poema que consolidou a obra de Delius foi o "poema sonoro". Com a noção de que a poesia é poderosa como a música, fundiu-as em grande parte de sua produção. Embora tenha sido a singularíssima capacidade de descrever melodicamente as paisagens, o que deu maior relevo às suas esplêndidas criações.
Com exímia habilidade, ele lapidou peças que acariciam a alma dos que veem e dos que não veem, com sonoridade e harmonias que se ajustam às imagens para imprimir significados musicais muito mais profundos. Composições que revelam segredos sussurrados mais aos ouvidos do que aos olhos.
Sob o imenso fascínio que as montanhas sempre lhe exerceram, foi em busca dos belos relevos na Noruega, onde alugou um chalé, atraído não apenas pela beleza natural, mas também pelo rico folclore escandinavo, finamente brunido. Tocado pela música de Grieg, que fez de um pequeno quiosque, ao lado de sua casa às margens dos fiordes de Bergen, um acolhedor estúdio para suas célebres criações, Delius também imprimiu o frescor das harmonias em seu poema orquestral “Idílio da Primavera”, no qual sugere possuir realmente em mente o fiel retrato da primavera norueguesa entre fiordes e montanhas.
Definitivamente foram as montanhas, sobretudo as norueguesas, que o arrebataram com mais vigor, desde cedo, e pontuaram partituras soberbamente nutridas de admiração pela imponência dos altos relevos.
Diante de “Songs of high hills” (Canções das altas colinas), por exemplo, desmorona-se o Delius religiosamente cético, como se dizia, e em sua personalidade sobrepõe-se a sublime devoção pelos encantos naturais. O grande maestro britânico Sir Thomas Beecham, talvez o condutor que mais exaltou e regeu Delius, descreveu “Songs of high hills” como “uma sequência mágica de sons e ecos, tanto vocais como instrumentais, que culmina em grande explosão de timbres que parecem inundar toda a paisagem”. Nesta peça, as vozes cantam sem letras, impostas para ovacionar os cumes com mística reverência.
“As canções das altas colinas” têm roupagem sinfônica grandiloquente na dimensão exata do que propõem refletir. Uma robusta orquestração que se enriquece gradativamente, ora se espelhando nos píncaros, ora em sutis filigranas cênicas, a lembrar auroras boreais que se fundem aos ecos do coro e dos solistas (tenor e soprano) em uma fantástica escalada às portas do céu. Uma ode brilhante e simultaneamente plena de serenidade que nalguns instantes parece resgatar a Sinfonia Alpina , de Richard Strauss. A aragem que eflui das harmonias desta peça, para alguns críticos, é quase sem precedentes e corresponde às orbes de contemplação, ao fazer da celebração da natureza o núcleo da obra. Os murmúrios distantes do coro sem palavras, sempre refletindo o tema principal, criam etérea magia em cuja textura vocal parece soar um hino da montanha, com traços paralelamente selvagens e espirituais que se sublimam no grande clímax que o conclui.
Já em “Muito além das colinas” (Over the hills and far away), imaginado dentro do mesmo insight contemplativo, o tema inicial com a frase ascendente enuncia o olhar a percorrer a extensão montanhosa, das bases aos topos, caracterizado por suave e envolvente melodia campestre. A temática evolui cumprindo o que pretende: transportar o ouvinte à amplitude cênica do acidentado relevo, com pinceladas que se alternam entre a dramaticidade do êxtase reverencial e o assombramento onírico.
Em ambas, o resultado foi realmente extraordinário e correspondeu à confissão do próprio autor: “Tentei expressar a alegria e o êxtase sentidos nas altas montanhas e retratar a melancolia solitária das altitudes mais elevadas em suas vastas extensões”. O que fez o maestro Thomas Beecham classificar esta composição como “uma das principais obras de Delius”.
É fácil perceber que às monumentais belezas da Noruega, país em que compartilhou amizades e afinidades com o músico Edvard Grieg e o dramaturgo Henrik Ibsen, é que Delius particularmente manifesta todos os louvores. A exemplo do que fez Grieg com o poema teatral “Peer Gynt”, ele musicou “Paa Viderne” (Sobre as montanhas), ambos de autoria de Ibsen, obra prima que conta a história de quatro personagens que escalam os picos montanhosos dos fiordes para brindar à liberdade e “despertar do pesado sono da vida”.
Embora o poema de Ibsen exponha-se dramático como uma tragédia operística, a intenção criativa de Delius destina-se a reproduzir musicalmente o deslumbramento que a paisagem acima das nuvens é capaz de promover, e uma perfeita simbiose entre música e poesia acontece nesta longa e inspirada narrativa poética, na qual Henrik Ibsen confessa a magia sentida no alto dos montes:
“Minha vida no vale deixei para trás.
Aqui em cima nas alturas há liberdade e Deus
Lá embaixo todos os outros estão tropeçando.”
A música foi composta para se incorporar à declamação do poema de Ibsen e transcorrer visceralmente intrínseca às melodias. A orquestra embala a entonação no mesmo percurso das emoções provocadas pela apaixonada poesia. O entusiasmo é sem medida neste espetacular melodrama de quase uma hora, em que o estilo singular de Delius desabrocha com estrondosa impetuosidade. Ele se empolga tanto pelos fulgores montanhosos, acoplados equitativamente no poema e na música, que fez suscitar comentários sobre não haver o menor comedimento no uso de címbalos, principalmente nos fulgurantes tuttis da orquestra. No clímax de extremada anagogia, o narrador esbraveja, enfim, à altura dos cimos:“Aqui eu vejo o mundo
na mais ampla perspectiva,
aqui sinto a brisa feito luz,
aqui eu encontro a liberdade,
aqui está Deus!”
Pessoalmente, diríamos que a jornada empreendida por Delius para atingir os cumes visionários e transpô-los a esta partitura o fez chegar também ao ápice de sua criatividade orquestral tematizada. Se alguém já classificou informalmente a música de Delius como “música de filme”, em Paa Viderne isso acontece com traços épicos, em que, de maneira assombrosa realiza a perfeita fusão entre música e poesia, gestada perante os fantásticos espectros das cordilheiras escandinavas , que tanto lhe embriagaram olhos e alma.A vinculação criativa com as cadeias pinaculares do relevo escandinavo permeou praticamente toda a vida de Delius com nítida intenção de exprimir a vastidão panorâmica. A vida artístico-cultural do país também o atraía com muita intensidade, e o resultado dessa conexão foi realmente exuberante, arrematada em seu último trabalho com tema de montanhas, já mencionado: “Canções das altas colinas”.
Salientemos que os poetas, escritores, pintores e dramaturgos noruegueses igualmente impressionaram-no. A Suíte para música incidental “Folkeraadet” consolida esta sintonia, pois foi escrita para encenar a peça teatral (de mesmo nome) de autoria do poeta, dramaturgo, jornalista e crítico de arte Gunnar Heiberg, nascido em Oslo.
Tal como as paisagens, os poemas se acoplaram com semelhante engenhosidade nas peças vocais e corais de Delius. A entonação, o texto, o drama, encaixam-se substancialmente na declamação orquestral. Nas óperas, todas de unânime sucesso, o compositor se notabilizou como exímio artífice lírico, ao carrear para a partitura o drama, a cena e a música com indiscutível equilíbrio.
As artes plásticas e a literatura estão idem presentes em sua criação, compartilhada com a esposa. Além de pintora bem sucedida e influente, Jelka Rosen mantinha estreita relação com o ambiente artístico da época. Alguns pintores famosos, amigos do casal, produziram memoráveis retratos de Delius a exemplo de Edward Munch, Ida Gerhardi, Ernest Procter, Paul Gauguin, James Gunn, Jacob Kramer e Martin O'Neil.
Acredita-se contudo que Henrik Ibsen e Walt Whitman tenham gozado de maior empatia, o que se verifica na dimensão dada à musicalização de sua poesia. Embora tenha prestigiado o poeta James Flecker ao compor a aplaudida música incidental para o romance “Hassan”, de mesmo nome.
O exemplo de “Sea Drift”, escrito para orquestra e vozes, baseado em poemas da coleção "Leaves of Grass", de Walt Whitman, está repleto de imagens de amor, do mar, da morte e da separação protagonizada por um casal de pássaros habitantes da costa marítima, descritos pela observação de um garoto com expressividade avassaladora. O menino se embevecia à espreita de um par de passarinhos a fazer um ninho, até que um deles voou para longe e nunca mais voltou. Incapaz de ir embora, com esperança e medo de que o companheiro retornasse e descobrisse que ele se foi, o pássaro solitário decide esperá-lo para sempre e passa a entoar um triste canto para a lua, as estrelas e o mar, que a ele se irmanam pesarosos pelo amor perdido. O desalento tumultua-lhe os próprios sentimentos, impele-o a sair correndo para a beira-mar, iluminada pelo luar, que lhe traz lembranças do canto do pássaro capazes de desvendar questões de sua mais profunda intimidade. Pode-se concluir que em Sea Drift, música e poesia forjam-se para louvar Walt Whitman à altura de um belo trabalho, que muitos consideram obra-prima.
Em “Prelúdio e Idílio” e nas “Canções de adeus” (Songs of Farewell), há mais uma intensa conexão de Delius com a poesia de Whitman, o que parece sugerir que é nas obras corais e orquestrais que encontramos a essência de sua visão filosófica. Considerada como um “sim à vida”, é a consagração do êxtase experimentado na contemplação de quem do alto se eleva para transcender ao paraíso em que se consuma:
Ó segredo da terra e do céu...
Eu permaneço como se estivesse
no bico de uma poderosa águia,
em direção ao mar, absorvendo, vendo…
Alegria, companheiro de bordo, alegria!
Satisfeito com minha alma na morte eu choro…
Agora o adeus à costa, terra e vida, final e adeus...
Whitman
Whitman
A exacerbação do romantismo cenoplástico se alvoreja igualmente no Concerto para Piano e Orquestra , tal como no “Caminho para o Jardim do Paraíso”, interlúdio orquestral que separa a 5ª e 6ª cenas de sua ópera “Romeu e Julieta na aldeia“ (A Village Romeu and Julieta), baseada na novela homônima do escritor suíço, Gottfried Keller, em que os amantes parecem dançar a noite inteira antes de morrer. Há momentos que espelham a sublime incandescência sonora da paixão de forma contagiante.
São muitos outros exemplos de evocação musical da paisagem e de tudo que exprime a felicidade, compostos por Frederik Delius. Sua imaginação pulula de tema em tema com extraordinária maturidade. Ao ilustrar musicalmente os primeiros cantos de um cuco (pássaro), em uma primavera, ele se canoniza como artífice do sonho contado em melodia. “Ouvindo o primeiro cuco na primavera” (On Hearing the First Cuckoo in Spring), uma de suas mais conhecidas páginas, simboliza a concretização melódica do onírico. Com igual primor, compôs magníficos poemas sinfônicos, a exemplo de “Noite de verão sobre o rio”, em que as frases rodopiam nos sopros embalados na superfície da água em curso, assim como fez em “By the river”, da Suíte Flórida. Em “Noite de Verão” os desejos de plenitude se tornam mais cálidos e intensos, e no “Jardim no Verão”, melodias evocam libélulas e borboletas a voejar pelos canteiros entre bulbos que se abrem em flor, e em “Manhã de Primavera (Spring morning) escuta-se uma fervorosa declaração de paixão à estação florida.
Em inúmeras composições Delius descreveu a vida e suas emoções como ninguém. O verão e a primavera excitavam-no com a alegria que tão bem se escuta em “Uma canção de verão” (A Song of Summer) a dispor cores do crepúsculo em filetes de luminosidade que se ouvem nos sopros, trompas e harpas a dialogar em versos. Os corais nas “Canções do Crepúsculo” mais parecem preces em forma de poesia, às luzes que se despedem com o Sol na voz dos solistas. A despeito da simplicidade do título, na peça “Um arabesco”, para grande orquestra, barítono e coral, Delius aborda emoções mais intensas sobre perdas amorosas, mas sempre inserindo-as nos benefícios que a observação da natureza pode trazer. "Um arabesco" é baseado em um poema favorito, de autoria do poeta dinamarquês Jens Peter Jacobsen, que o conclui com a esperança de que na arte reside a imortalidade como sentido da vida. A presença da literatura poética na paisagística obra de Delius está sempre a evidenciar crença na redenção do ser humano por meio da força da poesia e dos encantos da natureza .
A diversificada cenografia paisagística exerceu magnetismo cativante em toda a trajetória de Delius, como um dístico carimbador de seu estilo de vida: “Não quero escrever se não for beleza e alegria”. Um estado de espírito que o estimulou a viver os prazeres da liberdade, da boemia, da vanguarda, muitas vezes brotados da felicidade que via emanar das belezas da natureza.
As quatro estações, a aurora, o crepúsculo, as noites e as manhãs, os jardins, pássaros, rios, florestas, com seus respectivos cenários e personagens, amalgamaram substancialmente o idealismo naturalista de Delius, capaz de trazer para a pauta desde o voo das andorinhas tardias às vozes de frondosos cedros. Sua música, ainda que sem referência incidental explícita, é a representação do ambiente ecológico. Nas “Aquarelas”, nos três poemas tonais, em “Eventyr”, que evoca o espírito dos célebres contos folclóricos do escritor norueguês Christen Asbjornsen, há contornos paisagísticos colossais .
Nos concertos para violoncelo e orquestra; para violino e orquestra; e para piano e orquestra; e no concerto duplo (Violino, violoncelo e orquestra) evidencia-se total domínio do instrumento solista, sobretudo os de cordas. Assim como nos caprichos e elegias, atingindo plena maturidade no “Quarteto de Cordas”, a exemplo de Beethoven e Shostakovich.
À poesia, ao amor e ao romance, Delius dedicou um nicho especial além de “Songs of Farewell” e “Cynara”, música para barítono e orquestra, com poemas do inglês Ernest Dowson. Sob influência da experiência americana na gestão do laranjal da família, Delius também escreveu o poema orquestral “Hiawatha” baseado no folclore americano, com texto do grande poeta americano Henry Longfellow, “The Song of Hiawatha”, em torno de uma história indígena de amor e perdas ambientada em desoladas regiões norte-americanas, onde o elo do homem com a natureza é mais intenso e vibrante. O que resultou em uma metáfora musical icônica para Delius, que se esmerou em belas cenas, como a que se refere ao trajeto de Hiawatha ao remar sua canoa em direção ao pôr do sol, onde pretende renovar vida e esperança, e desaparece para sempre.
Várias óperas completam esta singular coleção de dramas ardentes de paixão como “Fennimore e Gerda”, “Irmelin”, “Koanga”, “Margot la rouge”, “A fonte mágica”, além de “Romeu e Julieta na aldeia”, já citada. “Fennimore e Gerda”, ópera orquestral que funde cenários e paixão ardorosa, possui passagens de deslumbrante força lírico-dramática.
Delius passeou pela dança com a mesma felicidade e destreza com que escreveu rapsódias, polkas, suítes, arabescos. Nas peças para piano solo - Prelúdios, “Pensamentos melodiosos”, Mazurka, Valsa, Tocata - assim como nas sonatas, em que reitera sua formação como habilidoso pianista, e na extensa coleção de canções para piano e voz.
Soube, como poucos, projetar cenas urbanas como fez na grande homenagem a Paris, cidade que o acolheu na fase mais produtiva de sua vida pessoal e profissional. A peça “Canção de uma grande cidade” (The Song of a Great City) frequentemente executada pelo mundo até hoje, espelha qualidades parisienses vistas de diversos ângulos. Sua importância histórica, seu povo revolucionário e defensor das liberdades, seu crescimento metropolitano que lhe conferiu o título de “cidade luz”, sua vida artística e festiva que atrai e encanta tanta gente (que o diga Hemingway) e, acima de tudo, o esplendor da iconográfica beleza, majestosamente retratado por Delius nesta música que tão bem explora desde o requinte das filigranas à imponência cultural e arquitetônica da capital francesa.
Além da “Canção para uma grande cidade”, a alegria que parece habitar o coração de Delius evidencia-se singularmente na polca para piano “Zun Carnival”, e em “Brigg Fair,“ poema sinfônico que brinda a história de uma tradicional feira inglesa que acontece desde 1205 em Brigg (Lincolnshire). A obra se inspirou em uma antiga canção folclórica que o empolgou ao escutar o arranjo do compositor australiano Percy Grainger, a quem pediu permissão para orquestrá-la.
Há quem se refira a Delius como cético, isento de convicções religiosas por ter-se declarado ateu em algumas entrevistas, pelas claras preferências filosóficas niilistas e pela ausência do tema da morte em sua obra. Seu culto era à vida! Até o Réquiem que compôs fugiu da estrutura e do contexto em que tradicionalmente se configuram as missas fúnebres sinfônicas. É justamente neste réquiem e na “Missa para a Vida”, título que igualmente o norteia em direção oposta a das obras corais cristãs, que Delius fortalece sua permanente inclinação à alegria. São quase três horas de opulência musical que ele tributou ao prazer de viver intensamente como se vê no refrão que exclama: “Honro os que podem amar a vida, mesmo sabendo que vão morrer”.
No Réquiem, percebe-se implícita a influência dos filósofos Nietzsche e Schopenhauer, algo de William Shakespeare, da Bíblia e do texto da “Canção da Terra”, de Gustav Mahler. Há quem se refira à inserção do caráter ecumênico, pois nele se mesclam "Aleluias" e invocações muçulmanas a Alá, resultado que lhe satisfez ao ponto de ele dizer: “Acho que não fiz nada melhor”.
Com quase duas horas de música, a “Missa para Vida” celebra com veemência a voluptuosidade do existir. É a pura e esfuziante alegria que se sente e se escuta neste vibrante trabalho, que, com a “Dança da Vida”, Delius arremata a jubilosa trilogia em homenagem aos prazerosos elixires que enxergava no viver, consubstanciando corajosa atitude em rejeitar as fés organizadas, o alento que desejava para as gerações futuras.
Ao coroar-se com o título de “Apóstolo da Natureza”, nosso compositor se glorifica como um visionário estoico que acreditava na renovação perpétua por meio do contínuo regresso da primavera, todos os anos, como símbolo de sua música. Música rapsódica, meditativa, narrativa, que não está subordinada às regras tradicionais, e fugiu de qualquer enquadramento conceitual ou formal da época, e quem sabe até dos dias atuais.
Pode-se concluir que Frederik Delius guiou sua fértil inspiração para utilizar a orquestra como ferramenta criadora e recriadora de cenários, à maneira de um pintor. Seu desejo era difundir, fundir e infundir nos ouvintes a visualização sonhada e imaginada por meio das melodias e harmonias, na certeza de resgatar neles a felicidade interior, mesmo a quem não mais fosse permitido enxergar com os próprios olhos. Em busca dos mesmos efeitos que a 6ª sinfonia de Beethoven produziu em Gertrudes, na Sinfonia Pastoral de André Gide, citada no início.
Paradoxalmente, o destino lhe foi cruelmente irônico e o fez perder a visão! Seu espírito de liberdade e a ânsia de viver intensamente o expuseram a contrair sífilis, numa época em que tal diagnóstico soava como sentença de morte lenta, precedida de muito sofrimento físico. Após se instalar, a doença progrediu vagarosamente, impôs-lhe limitações, o uso de muletas, e intensificou-se nos últimos catorze anos de vida, deixando-o paralisado e completamente dependente.
Jelka e Delius
Recluso em sua casa de Grez-sur-Loing, a 80 quilômetros de Paris, acompanhado e assistido por sua esposa Jelka, definhou pouco a pouco, mas apenas fisicamente. O espírito continuava abraçado à música, muito acima dos limites impostos pela doença, sorvendo mentalmente as belas paisagens, o que sempre fez dele um ser sobrehumano. Para escrever, contava com Jelka, a quem ditava as novas composições, embora nem sempre pudesse contar com sua ajuda, uma vez que sua saúde era precária e obrigavam-na a se ausentar para tratamentos externos.Eis que surge um rapaz de 22 anos, Eric Fenby, organista e professor de música de Scarborough, cidade litorânea da costa inglesa em Yorkshire, conterrâneo e grande admirador de Delius, que toma ciência da situação e se oferece para assessorá-lo. Com a anuência de sua esposa, muda-se para Grez e se dedica de forma admirável ao ídolo a quem venerava. Passou a praticamente compor com Delius que, surpreendentemente, mantinha viva e acesa, embora na mais profunda escuridão, a luz da música, cada vez mais inspirada, e por meio da qual ainda vieram “Canções de Verão”, a Sonata para violino e piano, “Canções de Adeus”, “Idílio”, para soprano, barítono e orquestra, “Irmelin”, a Dança Fantástica e “Cynara”, para barítono e orquestra. Tudo construído a quatro mãos, no embalo de um consórcio afetivamente platônico e solidário.
Em introdução a um de seus vídeos, o canal “The Delius Channel” descreve: “Nenhum homem prova maior amor do que doar seis anos de sua juventude a um compositor cego e moribundo, permitindo a conclusão do trabalho de sua vida". Eric escreveu “Delius como eu conheci”, considerado entre os célebres livros de memórias sobre músicos, em que relata sua dolorosa, exasperante, mas gratificante missão, história sobre a qual se produziram vários filmes e documentários.
Foram seis anos movidos por elevado grau de generosidade e abnegação que o jovem Eric Fenby dedicou de sua vida para que Delius continuasse a enxergar mesmo sem ver. Uma prova de que a música é sem dúvida um meio de comunicação imbatível, capaz de transpor todos os limites e barreiras palpáveis que possam vir a ser impostas a alguém. Uma prova de que por meio da Arte que se sagrou como Divina é possível continuar a ver e sentir o que é divino.
Mesmo quando o destino é capaz de se vestir com a mais implacável das ironias e tirar a vista de um impecável artesão da paisagem. Ainda assim, com as forças exauridas, o corpo aniquilado, ele permaneceu visualizando, através da música, o que lhe encheu de vida por toda a vida. Certamente, os horizontes que lhe foram descortinados ao se libertar da matéria, foram e continuam tão belos como os que o imortalizaram como “Apóstolo da Natureza”.
Nota do autor
Após escrever e publicar este texto, recebemos mensagem (abaixo) de meu irmão, Carlos Romero Filho, em que além de nos lisonjear com o prazer de sua leitura, nos lembra do grande Villa-Lobos, a quem me penitencio pelo lapso em não citar um dos maiores representantes da música erudita brasileira. O que nos fez recordar de mais duas coisas, afora as que ele pontuou: a sensação de deslumbramento místico, daqueles em que vemos e sentimos a imagem de Deus, quando estivemos em uma reserva indígena em (Pitinga-AM) e desfrutamos a oportunidade de adentrar a floresta e nos deparar, estupefatos, com sua magnífica imensidão frondosa. A outra, foi a recordação de que nosso pai costumava ouvir “A Floresta do Amazonas”, extraordinária obra que decanta em rica tessitura sinfônica e vocal todas as belezas e mistérios de uma das grandes maravilhas do mundo com uma soberba homenagem ao povo indígena. Muito obrigado, meu irmão, penitencio-me perante sua oportuna menção a Villa-Lobos, de quem papai dizia: “Se ele tivesse nascido na Alemanha, teria sido tão famoso quanto Beethoven”.