Stefan Zweig tinha predileção por eles. Aos vitoriosos, preferia os perdedores, maiores e menores, não importava. Por isso, biografou e perfilou de Maria Antonieta, a rainha guilhotinada, a Sebastião Castellio, personagem pouco conhecido que teve a coragem de enfrentar o todo-poderoso Calvino – e perdeu, claro. Nos livros desse austríaco triste que conheceu a glória e o exílio, os perdedores ganharam a compreensão e a admiração da posteridade, o que, no fim, não deixa de representar a melhor e mais definitiva vitória.
É o mesmo caso, guardadas as proporções, do estadunidense Gay Talese, jornalista e escritor que sempre declarou sua opção pelas pessoas comuns ao invés das celebridades e que acaba de publicar uma espécie de livro de memórias intitulado Bartleby and me, a ser lançado no Brasil no próximo ano. Bartleby, para quem não sabe – e não há nenhuma obrigação de saber -, é o nome do protagonista da cultuada novela Bartleby, o escrivão, de Herman Meville, centrada nessa personagem mediana, sem nada de extraordinário, com uma vida insípida e que a qualquer solicitação alheia, inclusive de seus superiores no trabalho, respondia invariavelmente com uma espécie de mantra: “Acho melhor não”, para assim permanecer impassível - e indiferente – diante dos outros e da própria vida. Para Talese, esse Bartleby burocrata e anódino é um tipo de santo padroeiro das pessoas comuns, daí o título de sua mais recente obra.
Ele, Talese, tinha razões para suas reservas quanto às celebridades. No início de sua carreira como jornalista, tentou por todos os meios entrevistar Frank Sinatra e não conseguiu, impedido pelos assessores, bajuladores e até pelo próprio cantor, que não encontrou – ou não quis encontrar – tempo para conversar com o então anônimo iniciante. Mas o jornalista, a partir das migalhas de informações colhidas aqui e acolá no entorno de Sinatra, construiu com o seu talento um perfil do intérprete que se tornou um clássico do gênero, um retrato de maior alcance e profundidade que aquele que resultaria de uma entrevista padrão. É o que se chama de fazer do limão uma limonada – e que limonada!
Esse fascínio e essa preferência pelo comum e pelo fracasso nada têm de mórbido, mas constituem apenas uma sensibilidade especial para enxergar a grandeza no que é pequeno, a universalidade no individual e a possível eternidade no efêmero. Creio sinceramente, por exemplo, que Churchill teria coisas mais interessantes a pensar e a dizer sobre sua inesperada derrota eleitoral logo após a vitória na Segunda Grande Guerra que a respeito de seu imenso êxito em 1945, como líder da resistência a Hitler. Por paradoxal que pareça, em muitos casos – talvez a maioria -, o sucesso, em qualquer área, tende a mediocrizar as pessoas, a torná-las banais e previsíveis, rasas, enfim. Por isso, os verdadeiros sábios costumam se guardar da frivolidade dos holofotes e escutam mais do que falam, o que, a propósito, é uma marca das pessoas inteligentes.
É uma sensibilidade (não necessariamente uma virtude) e também um certo temperamento, penso eu, essa empatia (para além da simpatia) com os perdedores de toda espécie. Essa irresistível opção, por exemplo, pelo traído e apagado Karênin (o marido da famosa Ana) que pelo belo e vitorioso Vronski, tão raso e tão banal em suas conquistas facilmente imagináveis. Daí o romance de Tolstoi talvez devesse ter no título o nome do marido e não o da adúltera esposa, tão igual a tantas outras, na vida e na ficção. Quanta matéria humana e literária nessa personagem aparentemente medíocre do esposo honrado (mesmo que talvez entediante, admito) que, por amor, aceita receber de volta a mulher infiel. O grande escritor poderia atribuir a essa “cornice” livremente assumida por Karênin uma grandeza trágica incomparável, explorando as inumeráveis profundezas da alma do traído e do abandonado. A morte de Ivan Ilitch provou o quanto pode render literariamente uma personagem trivial observada da perspectiva certa. Como mero leitor, pressinto que o marido de Ana Karênina, em sua derrota, tem esse potencial dramático e isso explica a atenção que lhe devoto.
Quanto a isso, talvez seja possível defender que Machado de Assis, em Dom Casmurro, viu mais longe que o russo, pois deu protagonismo ao suposto traído Bentinho, inclusive o título do romance. Capitu, mesmo com sua obliquidade e olhos de ressaca, não tinha profundidade suficiente para dominar a trama romanesca e muito menos Escobar, que fez apenas o que se esperava dele naquelas circunstâncias, ou seja, pegou sem hesitar o que lhe foi oferecido, tal como Vrosnki ou o jardineiro da casa, se fosse o caso. Não o adultério em si mesmo, como fenômeno comum da vida, mas o que ele produziu na mente e no coração de Bentinho, tenha a traição ocorrido de fato ou não, isso sim deu interesse e dimensão universal à obra do modesto brasileiro do Cosme Velho.
Em 1966, na Copa do Mundo de futebol, os jogadores brasileiros, campeões em 1958 e 1962, davam como certo o tricampeonato. No entanto, perderam – sem sequer chegar às fases finais da competição. Drummond, no poema Aos Atletas, soube captar como ninguém a grandeza implícita nesse fracasso monumental. Escreveu ele, belamente:
“………..
Que importa hajam perdido?
Que importa o não-ter-sido?
………….
pois perder é tocar alguma coisa
mais além da vitória, é encontrar-se
naquele ponto onde começa tudo
a nascer do perdido, lentamente.”
Tocar alguma coisa mais além da vitória. É esse o “privilégio” dos perdedores. Os que estão habituados a vencer jamais tocarão essa coisa indefinida, mas que se supõe grande, tragicamente grande. Os Vronski da vida nunca alcançarão esse patamar de humanidade e é por isso que, como todos de sua variada espécie, são pequenos em suas enganosas e passageiras conquistas.
Evidente que não se trata de fazer a apologia do fracasso. Longe disso. Mas de ter um olhar compassivo – e compreensivo - para com os fracassados, que, afinal, somos todos, mesmo os vencedores, em algum momento e quanto a algum aspecto da vida. Ninguém vence sempre, sabemos. E se, por acaso, assim acontecesse com alguém, certamente isso o transformaria num tolo insuportável, eterna criança mimada e estúpida, incapaz de inspirar qualquer personagem de ficção que valesse a atenção do mais modesto autor.
Ironia e mistério da vida, o que perde tem mais a aprender e a ensinar que o que ganha. Pensemos nisso, mas, claro, não busquemos ser perdedores por masoquista opção.