Uma drosophila melanogaster, a popular mosca da fruta, apela para o álcool como uma maneira de compensação a sua carência de sexo. Já as drosophilae que estão saciadas sexualmente passam ao largo da tigela de mingau adicionada de 15% de etanol. Esta é a conclusão a que chegou um grupo de cientistas, a partir de uma experiência feita com 2 grupos de moscas dessa espécie. O primeiro grupo copulou com moscas virgens; o segundo grupo foi sistematicamente rejeitado pelas moscas, agora, fecundadas. Observou-se, então, que o grupo de machos fecundadores tinha um nível alto de um hormônio no cérebro, que os cientistas denominaram de neuropeptídeo F (NPF); o grupo de machos rejeitados, por sua vez, tinha um nível baixo do NPF, buscando no mingau adicionado com etanol uma compensação,
diante da rejeição sexual. A experiência foi mais adiante: manipulando geneticamente os dois grupos de machos, os cientistas baixaram ou aumentaram o nível de NPF, e o resultado foi o mesmo: independente de rejeição sexual, os que obtiveram um aumento do NPF comeram a comida normal; os que tiveram um decréscimo, buscaram o mingau com álcool.
A que vem esta introdução, quando estamos num debate sobre poesia e literatura? Diria que fui movido a trazer o exemplo acima por três motivos: o primeiro é que com ele podemos definir o que é ciência; o segundo, porque vemos aí um excelente exemplo de estesia e criação; o terceiro é que o ato de criar numa descoberta científica, ainda que semelhante ao da descoberta poética, é diferente. O exemplo trazido encontra-se na crônica científica “Como as moscas afogam as suas mágoas”, pertencente ao livro Folha de lótus, escorregador de mosquito (São Paulo, Companhia das Letras, 2018), de autoria de Fernando Reinach, trazendo a ciência para o cotidiano, com uma linguagem acessível e agradável, sobretudo para leigos interessados no tema, como eu.
A maneira como Reinach transmite a notícia da experiência, antes veiculada em um artigo científico de uma revista especializada, não se exaure na acessibilidade da linguagem e no tempero que torna agradável a sua leitura. Ele o faz, a exemplo de outros textos no livro, revelando como as descobertas da ciência se encontram próximas da criação artística. Para mim, experimentos como o descrito, descortinando os processos obscuros e os caminhos tortuosos que a vida percorre, são poesia pura revelada aos nossos olhos que enxergam muito aquém da maravilha que é viver. Este desvelamento se faz sob a forma do que chamamos, vetustamente e de senho franzido, de Ciência.
A crônica, ao mesmo tempo, revela a diferença entre as Ciências Biológicas e as Ciências Humanas, aqui representadas pela Literatura como disciplina, ainda que o processo de criação esteja, como já afirmamos, presente em ambas. Nas Ciências Biológicas, o experimento envolvendo a drosophila melanogaster, se correto, deverá ser replicado pelos pares dos cientistas que o realizaram, devendo, por conseguinte, obter o mesmo resultado, em qualquer lugar em que ele se realize, sem o risco de os cientistas que o replicaram serem chamados de plagiadores.
Nas Ciências Humanas, no caso da Literatura, ainda que se utilize um método ou um critério científico, os resultados de uma leitura analítica ou crítica tendem a ser naturalmente diferentes. Se houver uma réplica da leitura crítica, aquele que a replicou será tachado de plagiador. A diferença está em que as Ciências Biológicas trabalham com dados e esperam um resultado objetivo, que pode ser repetido à exaustão pelos pesquisadores; as Ciências Humanas, no caso da Literatura, trabalham com recepção e esta é subjetiva, dependendo de olhares múltiplos, em camadas ainda mais diversas. Em suma, a leitura que faço dos poemas de Hélder Moura ou de qualquer outro texto literário não poderá ser replicada, ainda que haja pontos de contato entre as várias leituras feitas de um mesmo texto, porque estamos dependendo da subjetividade de cada leitor, aprofundada ou não, a depender, por sua vez, do horizonte de expectativa de cada um, que poderá detectar, com maior ou menor profundidade o ato de criar, a póiesis (ποίησις), ato definido como mimesis (μίμησις), diferente do ato de criação da experiência científica que busca saber o porquê de as moscas drosophilae se sentirem atraídas ou não pelo álcool.
Na experiência literária, que é única para cada um, busca-se a resposta da estesia (αἴθησις), a sensibilidade, a emoção, o subjetivo, a compensação de uma falta na subjetividade do criador, do poeta, que, por sua vez, pode alargar-se, saindo de si e encontrando o acolhimento de quem recebe a sua criação, não importa se o público em geral, se o crítico literário, que seria, teoricamente, um leitor mais experimentado por ser mais bem aparelhado para a leitura.
A poesia, intrinsecamente vinculada, como toda Arte, ao ato de criação é mimese, conforme a definiu Aristóteles, há quase 2400 anos. Invertamos, contudo, a proposição. Em lugar de dizermos que a poesia é uma imitação, digamos que a imitação é que deve ser poesia, entendida aqui como um ato criativo de uma possibilidade, não de uma mera cópia de uma realidade que se mostra incompleta. Ou, colocando as coisas no seu devido lugar, a mimese é produto de um ato de criação, e o poema, a coisa criada, é o seu resultado. À literatura, cabe tratar do estudo da poesia e do poema, e fazer a diferença entre uma coisa e outra. Cabe ao poeta, como criador, fazer, criar e, se for o caso, refletir e problematizar a criação, a sua e as demais. Cabe ao crítico dizer o que se fez, como se fez, e o que resultou do que foi feito.
O livro de Hélder Moura, A discreta arqueologia da noite (João Pessoa, Ideia, 2023), com fortes traços psicanalíticos, dos quais me desvio, por absoluta falta de competência nessa área, traz como subtítulo quasipoēmas. É nesse subtítulo que me agarro, para falar da experiência de uma criação que reflete a própria criação, portanto, metalinguística/metapoética, a partir já classificação arquitextual proposta pelo autor. Hélder Moura, com certa cautela provocativa, não afirma que são poemas, mas quasipoēmas, abrindo uma fresta para discussão de seu livro.
Vejo o seu livro como uma estrutura dialogal com a crítica e com a criação, cujo poema de abertura, “Mistério da literatura”, se entrelaça com o poema final, “Mágico ofício da palavra”, intermediado por outros dois, “Toda a poesia do mundo” e “Paredes sujas de escuridão”. Neste intervalo se insere a consciência do criador, diante de sua criatura: “sem sonhos, meus caros,/ a vida é apenas miséria”, definindo seu inconformismo com o apenas viver; vendo a criação artística como um meio de proporcionar ao homem ir além. Mas não se exaure aí na busca de compensação da insuficiência, que gera a aflição, o desencontro do quase, a angústia da incompletude, os questionamentos se irradiam para a luta do fazer poético, adensando a sensação de incompletude, porque a palavra incompleta e, por natureza, aquém do raciocínio, sempre “esbarra no molambo da língua paralítica” ou na escrita que se quer clara, mas que às vezes é tão precária, quanto “Descer aos mais esconsos labirintos” (“Aventura temerária”). Eis o poeta preso e se digladiando com a expressão, com a dificuldade de comunicabilidade com o outro e consigo próprio, num inequívoco movimento procustiano, em que “Braços me puxam para cima/Outras torqueses me impulsionaram para baixo” (idem).
Nesse jogo estranho e inesperado do tentar decifrar-se e completar-se, para que a conexão com o outro possa se estabelecer, vemos um eu conduzido, “mais e mais” ao labirinto, “Para dentro de” si mesmo” (“Aventura temerária”). Algo, no entanto, se revela aos olhos do eu-poeta, descobrindo que não é porque o crítico se aparelha de um horizonte de expectativa maias fornido que “a sua algaravia... se traduz”. O eu-poeta sabe que a tradução da estesia da criação se faz completa apenas para quem cria. O problema está em como expressá-la, pois a única forma é semelhante a afundar “os pés na noite” (“Quando toquei o fundo da noite”).
Nesse diálogo tenso com o fazer e com a recepção crítica – “Ai de mi, que ando em confusão” (“Alucinação do ser”) –, há uma posição assumida de se colocar o crítico em xeque. O poeta constrói a arte, a poesia; o crítico, a literatura. Por isso mesmo, “de que importa ele saber (ele, o poeta)/o que é literatura?”.
É suficiente fazê-la, na explosão estética da criação, de cujo embate, surge um fio na escuridão labiríntica da noite, como finaliza o poema “Íntima maldição”:
“Não há mais o que fazer.
Talvez um dia as palavras,
Em sua íntima maldição,
Virem apenas poesia, afinal.”