É raro encontrar qualquer obra, científica ou não, escrita no al-andalus que não esteja adornada com poemas. A mais idiossincrásica fo...

Al-Mu'tamid, poeta do Destino

poesia arabe
É raro encontrar qualquer obra, científica ou não, escrita no al-andalus que não esteja adornada com poemas. A mais idiossincrásica forma de cultura oriental, no geral, e árabe, em particular, sempre foi a poesia, a arte do verbo que, neste contexto, nasceu para fazer companhia ao beduíno, seguindo a cadência da sua montada, na solidão do deserto. Talvez não seja por acaso que verso em árabe se diga bait, que significa
poesia arabe
Carl Haag, 1874
simultaneamente casa, e palavra se pronuncie mufrad, de fard, indivíduo.

Já no Portugal d'al-andalus, de tão lauta glória e drama, a poesia fazia parte do quotidiano e era prática comum, não só nas mansões com os seus jardins, ou nas alcáçovas de senhores e próceres, mas ainda usada pelo povo humilde que arroteava os campos na faina da lavoura. Nas cortes, perante os vizires, os políticos adornavam as suas prédicas versejando e romanceando habilidosas metáforas. Todo o cavaleiro, antes de desembainhar o sabre para se arrojar estoicamente à alucinação da peleja, titubeava um poema em forma de oração. Homens e mulheres do al-gharb eram poetas. Poetas do panegírico, da paixão, da saudade, do drama, da graça e dos amores infelizes, por ser infeliz o destino que os marcou.

É nesta conjuntura que nos surge a figura de Al-Mu'tamid, neto de Al-Qasim, emir de Sevilha (a quem se deve o registo da primeira antologia poética do al-andalus, com poemas dedicados às flores) e filho do cruel e astucioso Al-Mu'tadid.

poesia arabe
Sevilha, EspanhaAnon., Wikimedia
Nascido em Beja, em 1040, ao que se supõe numa vetusta construção, presentemente desaparecida, a “Casa dos Corvos”, alcácer de emires árabes com o epítome de “Casa de Aladino”, célebre poeta e teólogo de uma família que em Silves mantinha uma tertúlia literária rival da dos Banu Al-Milh, Al-Mu'tamid era já, aos onze anos de idade, governador nominal de Huelva, cujo reino taifa abarcava cidades como Sevilha, Córdova, Mértola, Silves, Faro, Huelva, Carmona, Ronda, Algeciras, Niebla, Jaen, Murcia e Beja, herdando o trono em 7 de Fevereiro de 1069, por execução do seu irmão Ismail, ordenada pelo próprio pai para castigar uma suposta traição.

poesia arabe
Ludwig Deutsch, 1896
A história de Al-Mu'tamid está indelevelmente associada ao Gharb, a Silves, ao Palácio das Varandas, ao rio Arade, à sua esposa 'Itimad Ar-Rumaykiyya, à sumptuosidade dos palácios sevilhanos, aos prazeres, aos feitos da guerra, à controversa e dramática relação, digna da pena inspiradora de novelistas e dramaturgos, com o companheiro e picaresco poeta de Estômbar, Ibn 'Ammar (poeta multímodo, tão calculista e aventureiro quanto dotado de talento estadista e diplomata que teve, a certa altura, um papel decisivo como conselheiro de Al-Mu'tamid, chegando a fazer deter Afonso VI, vencendo-o numa célebre partida de xadrez em que jogaram as sortes da batalha) e à juventude de ambos ocorrida em Silves, numa existência que se distribuía entre saraus literários, os prazeres espirituais da poesia, da dança, da música e do estudo, de encantamento sem par, do harém e da caça, talento, sagacidade, primor, dias de tragédia e de luta...

Com a morte de Ibn 'Ammar, apressa-se o fim político de Al-Mu'tamid, ao perder o seu mais hábil conselheiro, político e diplomata, no momento em que as arremetidas e exigências de Afonso VI se tornavam mais ameaçadoras do que nunca.

poesia arabe
Stefano Ussi, S.XIX
Para o ajudar a combater as tropas cristãs, nos campos a norte de Murcia, Al-Mu'tamid toma a funesta resolução de clamar pelo auxílio do astuto e rigorista Yussuf Ibn Tashfin, senhor dos Almorávidas, vindo dos confins do Sahara. Tal auxílio revela-se pontualmente persuasivo, já que as alentadas hostes cristãs são, de facto, completamente neutralizadas, em 1086, na batalha a que os árabes chamaram Zallaqa e os cristãos Sagrajas, a nordeste de Badajoz. Depois de depor o rei de Granada, Yussuf apodera-se, sucessivamente, de todos os reinos taifas até chegar a Sevilha, em 1091, acabando por aprisionar Al-Mu'tamid, levando-o, juntamente com os membros que restam da família real, para o cativeiro.

Por fim, destronado após a queda de Sevilha, o tugúrio. Desterrado primeiro para Tânger, posteriormente em Meknés e depois para Aghmat, uma obscura povoação na orla da cordilheira do Atlas marroquino, no meio de esparsos olivais a fazer lembrar uma paisagem alentejana, com o pé preso à grilheta, tendo por perto somente um bando de cortiçóis, aos quais dedicou um belo poema, e a arte como único refrigério, compondo os mais inspirados e sentidos versos de toda a sua obra. Após incontáveis sofrimentos, o último golpe é o da morte da bem-amada 'Itimad, caprichosa mas fiel companheira, que o acompanhara dos momentos de grandeza à mais extrema miséria. Al-Mu'tamid, depois de uma agónica vivência, vem a falecer, poucos meses depois, em 1095.

poesia arabe
Carl Haag, S.XIX
Ainda hoje, tal a riqueza e multiplicidade da sua personalidade, Al-Mu'tamid continua a ser uma fonte inexaurível de abordagem, de misticismo, de interesse e de amargura.

Findo este memorial, cotejando um fragmento de um verdadeiro diário espiritual do génio poético daquele que é apelidado, justamente, de “pequeno rei, grande poeta” Al-Mu’tamid Ibn ‘Abbad:

“Solta a alegria! Que fique desatada! Esquece a ânsia que rói o coração. Tanta doença foi assim curada! A vida é uma presa, vai-te a ela! Pois é bem curta a sua duração”.
APRESENTAÇÃO
poesia arabe
António José Rodrigues é natural de Lisboa, Portugal, autor do livro "Um Certo Oriente", que reúne crônicas sobre suas experiências com a cultura do Norte da África, Oriente Médio, Golfo Pérsico e Ásia. É ensaísta, orientalista e, semanalmente, aos domingos, apresenta o programa com o mesmo nome de seu livro, transmitido pela Rádio Telefonia da Amadora, das 21h às 22h, horário de Portugal continental, que corresponde à faixa das 17h às 18h, no horário de Brasília.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Caro autor. Obrigado por nos presentear com a exposição sobre o poeta Al-Mu'tamid.

    ResponderExcluir

leia também