Antes da pandemia, assisti ao espetáculo Violetas; “fruto da pesquisa “Memória da Voz”, realizada pela atriz Mayra Montenegro, com direção de Raquel Scotti Hirson (LUME Teatro) e assistência de direção de Eleonora Montenegro. O espetáculo trata do silenciamento de mulheres, guerreiras anônimas, sonhadoras solitárias, que dedicaram suas vidas aos filhos e maridos e não puderam realizar sonhos outros. O fio condutor é a história da avó de Mayra, dona Wilma, que com o seu exemplo de vida e amorosidade, inspira toda a pesquisa.”
Assisti no Teatro Piollin e na época, aplaudi com entusiasmo para esse trabalho de resgate e memória das mulheres, no caso da avó, abordando temas tão importantes nas histórias e vidas das mulheres: criação artística, silenciamento, enclausuramento, domesticidade, sonho, maternidade, casamento, violência doméstica e tantos outros vieses femininos/feministas.
Semana passada (31/08), no Teatro Ednaldo do Egyto, fui assistir à palestra/espetáculo, Violetas em Desmontagem (2022): “todo o processo de criação de Violetas é desmontado, as entrelinhas e subtextos são revelados. A Desmontagem é uma forma de lutar pelo fim da violência sexual contra meninas e mulheres. Violetas em Desmontagem é uma palestra-performance artística, pedagógica e política que revela o processo de criação do espetáculo Violetas”
Além de revisitar Violetas, e lembrar de algumas cenas, tivemos o privilégio de acompanhar o processo de criação, encenação, e resoluções cênicas para as abordagens do texto. No quesito da montagem, muito revelador ver o cenário, as criações de iluminação, imagem, e principalmente dos objetos escolhidos, como parte da pesquisa da atriz/doutoranda, em relacionar a relação com esses mesmos objetos (lembrei do conto “Objetos Sólidos”, de Virginia Woolf). Os objetos de Violetas são: a máquina de costura, a vassoura, a caixa que virou barco, e claro, as imagens das cantoras de rádio (Carmen Miranda, Bibi Ferreira), os filmes (E o Vento Levou) e as músicas (A noite do meu bem – Dolores Duran), dentre outras. Tudo intermediado com problematizações cênicas que potencializavam o texto de homenagem e denúncia.
Mas não só de homenagem é Violetas. Mayra se apropria das memórias e saudades da avó para também falar de uma geração de mulheres que dominavam o espaço doméstico, mas que foram cerceadas dos seus sonhos pela própria estrutura do casamento e sociedade patriarcal. Sonhos esses que iam para debaixo do tapete ou para o inconsciente, causando tristeza, frustração e doença.
Esse re-visitar vai desaguar também nas próprias vivências de Mayra; vivências essas que ultrapassam todos os limites da violência contra a mulher, como uma forma não só de catarse própria, mas de alerta para que nós, mulheres do século XXI, principalmente as jovens, fiquem de olhos bem abertos para a violência explícita, e, principalmente, para a violência simbólica e subjetiva. Aquela traiçoeira que pulsa por entre as entrelinhas e o subtexto, e que mina toda e qualquer autoestima.
Na plateia, amigos, familiares, e alunos de teatro que juntos fizemos uma conversa que se manifestou em entrevista, depoimentos, reações e recepções ao trabalho forte e impactante para a doutoranda, e para nós, do público que contou com a presença masculina também que, com sensibilidade, também se posicionou e reagiu ao texto em “desmontagem” tão sensível.
Mayra tem um talento todo seu. Mas há de se registrar também a genética. Filha da não menos talentosa, Eleonora Montenegro, e do ator e produtor cultural, Buda Lira. Sem falar nos multi-talentos de toda a família Lira.
O corpo fala. O corpo feminino pede socorro. E o corpo de Mayra é emprestado ao personagem da avó, ou das avós dela e das nossas para se curvar, enrijecer, aquietar, engolir, tremer, trincar os dentes, silenciar, subjugar-se e “esquecer”.
Como está escrito no release do espetáculo: “Ao buscar narrar a vida de sua avó, Mayra narra a própria vida e a vida de tantas outras. A Desmontagem mergulha mais fundo em sua história e traz à tona as entrelinhas e subtextos do processo de criação, o avesso da cena revela dores e lutas que não foram expressas verbalmente. Também como um ato político, torna visível e audível o tema da violência sexual, que ainda é tabu na sociedade, expondo evidências, ativando perguntas e incomodando o silêncio. A Desmontagem busca a retomada da voz, a retomada do poder pessoal e direção de si mesma, em busca de uma cura não apenas individual, mas coletiva.”
Mãe e filha inciam a conversa com a plateia e também encerram, cantando juntas. Vozes entoadas. Carinhosa e cúmplices de uma “sisterhood” que, ultrapassa todo e qualquer vínculo com o tempo. Todo o tempo. Todo o amor entre mulheres.
Obrigada Mayra e Eleonora!