“A gente que é mulher vive um terror cotidiano. Mudamos muitas coisas na estrutura social. Séculos de lutas, queima de tudo, de corpos na Inquisição, enfrentamento às guerras, lutas nas fábricas, no campesinato. As conquistas do presente tiveram um alto preço pago pelas mulheres na História."
(Sandra Raquew, em “Viva nos queremos”, jornal A União, 4 de agosto 2023)
(Sandra Raquew, em “Viva nos queremos”, jornal A União, 4 de agosto 2023)
Recentemente, o STF derrubou o uso da tese de legítima defesa da honra para crimes de feminicídio. Uma conquista mais que atrasada para um crime hediondo que tomou visibilidade depois do assassinato de Ângela Diniz, por Doca Street, quando as mulheres foram às ruas gritar – “Quem ama não mata”.
A Lei Maria da Penha, 2006, é uma lei federal brasileira, cujo objetivo principal é estipular punição adequada e coibir atos de violência doméstica contra a mulher. Mas, o que se vê todo dia todo? Uma rua escura e uma faca. Duas notícias recentes ultrapassam qualquer tentativa de compreensão:
“Homem tenta cegar ex-companheira. Mulher sofreu cerca de 20 golpes de faca no rosto; autor não queria que ela “olhasse para outro homem”. “Uma mulher bêbada foi abandonada no chão de uma rua na cidade de Itaitinga, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), e, enquanto estava desacordada, foi estuprada por um homem que passava pelo local”.
Todas nos perguntamos o porquê de tamanha violência cotidiana? Os especialistas em violência contra mulher tentam argumentar: machismo estrutural e ranços machistas, impunidade, tolerância, nulidade da prova, naturalização da violência, e tantos outros comportamentos ancestrais e introjetados na nossa sociedade ainda.
No primeiro caso, das facadas nos olhos dessa jovem de 23 anos, fiquei a pensar na prepotência inútil desse marido. Como ceifar o olhar de alguém para qualquer direção? Olhamos desde que nascemos e até o último suspiro. Olhar. Contemplar. O mundo. As pessoas. A beleza. A natureza. A vida. E nisso se incluem os homens e mulheres. Admiramos as pessoas. Olhamos, até com desejo, sim. Não necessariamente realizamos tudo o que gostaríamos. Mas a posse e o ciúme doente inundam aqueles que pensam poder enclausurar as mulheres nas torres de Rapunzel.
Já vimos casos do homem que tinha família escondida no subsolo da casa, no caso, sua filha, e muitos filhos vivendo em estado de escravidão e crime. Casos de rapto, estupro, sequestros e tantas coisas horrendas que os jornais não dão conta mais de noticiar. Nas campanhas de “Meu Primeiro Assédio”, não sobrou uma mulher sequer que já não tenha sido assediada de alguma forma pelos seus parentes, vizinhos, namorados, chefes ou maridos. Uma violência que nos foi introjetada desde sempre, e que nos custou tempo para adquirir consciência para nomear aquelas vivências monstruosas e aniquiladoras.
O outro caso, a moça que bebeu demais e foi deixada num táxi rumo à sua casa, num estado de vulnerabilidade, recém saída de uma festa, não foi cuidada pelos parentes, deixada feito um embrulho num lugar ermo, e um passante aproveitador não deu outra, sequestrou-a como um peso morto para outro lugar para, ali mesmo, por entre saia, suor, sêmen e solidão, darem as caras. Que desejo esdrúxulo é esse que faz latejar a pulsão da morte? Quando o sexo é o mais puro — selvagem também —, e arrebatador desejo de vida? Vejo as pessoas velhas, e em algumas vezes com demência, só a falar de sexo, e até mesmo com palavreado que jamais ousariam na vida consciente, a nos mostrar a força vital do sexo, como desejo de vida. Pulsa até o último suspiro. Aí vêm esses seres execráveis, das profundezas de uma tara abominável, se aproveitar de um corpo inerte, inválido, para saciar sabe-se lá o quê?
Sandra Raquew ainda no seu texto tão eloquente conclui: “A cultura do estupro e da violação das mulheres é quase um paradigma aceito pelo grau de naturalização com que muitos setores agem, reproduzindo um comportamento social de culpabilização das vítimas... Parece não haver lugar seguro para as mulheres... A cultura do estupro precisa ser percebida para além do corpo violado de uma mulher sobrevivente... há algo na cultura, nas crenças sociais que continua tecendo uma percepção supremacista, desigual e doentia que constrói na sociedade a dinâmica da violência contra nós mulheres, como algo corriqueiro e que não se previne ou se pune adequadamente ainda. Até quando a gente vai suportar?”
Sincronicidade - Já tinha escrito esse texto há alguns dias quando, domingo (20/08/2023), leio n'A União, o excelente Caderno Pensar – Feminicídio “Vidas em Risco”. Se já tivesse lido, teria tantas outras coisas para comentar. E espaço também: “Além da misoginia (ódio e desprezo pelas mulheres), existe o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre as mulheres, uma vez que os criminosos consideram a mulher como um objeto de posse, além de um histórico de agressões e comportamentos violentos com uma ou mais parceiras.”