O título acima peca pela insuficiência. Poderia ser “Uma menina contra tudo e todos”. Contra o desprezo estúpido dos governantes, contra a cegueira absurda dos que somente patrocinam gente e equipes já consagradas, contra a descrença generalizada.
Falo da saga de Kay France, a paraibana e, até então, a primeira latino-americana, a atleta mais jovem a atravessar a nado o Canal da Mancha, um desafio para poucos seres humanos. Ela fez isso em 19 de agosto de 1979, mal havia saído do 16º ano de vida. O Jornal Nacional divulgaria o feito, na edição seguinte, para o espanto de um País inteiro e o vexame de parte daqueles que lhe negaram o apoio insistentemente requerido.
A outra parte a fez desfilar em carro aberto quando da volta a João Pessoa. Foi, é e sempre será assim, minha querida: a classe política nunca desistirá de pegar carona no sucesso alheio obtido a penas duríssimas. Não poupam sequer as crianças.
“Não imaginas como é bom poder falar contigo. Maravilhoso, mesmo. É como voltar no tempo”. Foi o teor da mensagem que há pouco me enviou Kay France, via Instagram, onde acabava de localizar este velho jornalista a quem a sorte propiciou o acompanhamento dos seus primeiros passos rumo à aventura que a consagraria no esplendor da juventude.
José Sales Pontes, o pai, professor de Educação Física e lutador destemido de Vale-Tudo, apresentou-me a filha quando eu militava na Equipe de Reportagem do jornal “A União”. Quis a mesma sorte que eu conseguisse um dos primeiros espaços nacionais para o intento e os esforços dela: um canto de página no “Estadão”, o jornal paulista que tinha como correspondente, em João Pessoa, o colega Barreto Neto. Eu substituía Barretinho que, na oportunidade, havia entrado em gozo de férias. Logo nos tornamos amigos eu, Sales, Kay e o restante da família.
Como me angustiou, tempo depois do nosso primeiro contato, o desaparecimento dessa mocinha em mar aberto, por quase seis horas, no carnaval de 1976. As emissoras de rádio e o serviço de som da Praça 1817, onde ocorria o desfile de blocos e escolas de samba, suspenderam suas transmissões para amplificar o apelo de Sales por um barco necessário à busca da garota numa tarde que já escurecia. A menina assim perdida tinha idade não muito além dos 14 anos.
Mas o socorro não seria preciso. Kay, sua resistência e sua predestinação já eram maiores e mais fortes do que o mar aberto. Cansada e picada por tatuís, ela chegou à Praia do Poço, por conta própria, depois que se acenderam as luzes da cidade. Guiou-se pelo clarão sob o céu de estrelas num ponto do mar do qual a zona costeira não mais era vista. Foi o que Sales me disse.
Contou-me, ainda, detalhes da quase tragédia. Kay repetia o treinamento costumeiro: as braçadas de João Pessoa (à altura do Cabo Branco) até Cabedelo e, imediatamente, em sentido inverso. Isso mesmo, mais de 40 quilômetros de nado sem descanso. Foi na ida que ela se perdeu.
Como ainda não havia apurado a técnica que, posteriormente, a faria respirar dos dois lados, afastou-se muito da praia (o lado oculto) em decorrência da demora na correção do percurso. Em nenhum momento, ouviu os alertas desesperados do pai que pela areia sempre a seguia. Pela areia, sim, pois o salário de professor, a pequena remuneração dos ringues e a indiferença institucional lhe impediam a posse de um barco em benefício da orientação técnica e da proteção à filha mal ingressa na adolescência.
“Atravessar o Canal da Mancha, como? Essa pirralha ainda deve brincar com bonecas”, pensei ao vê-la pela primeira vez. Mas tal impressão logo se desfazia quando dela percebi os passos seguros, a fronte erguida e o olhar de quem nasceu para desafiar o mundo e seus infortúnios.
Kay tinha seu propósito firmemente decidido desde os 12 anos de vida quando leu sobre as travessias do Canal feitas em 1958 e 59 pelo brasileiro Abílio Couto, a quem as grandes publicações citavam com láureas e honras. Pasme-se: a pequena paraibana até então não sabia nadar. O mesmo Abílio viria a treiná-la até romper o elo de confiança estabelecido com a pupila. De olho grande na promessa de patrocínio que dele engordaria a conta bancária, decidiu que não era chegado o momento daquela travessia. Argumentou que a jovem Kay ainda não estava para tanto preparada. Que voltassem no ano seguinte. No retorno à Europa, era o pai quem a treinava.
“Foi mais difícil chegar à Inglaterra do que atravessar o Canal da Mancha”, comentaria a vitoriosa Kay France. A viagem definitiva somente fora possível em razão da ajuda financeira concedida em parte por uma empresa pernambucana e, de outra parte, pelo Conselho Nacional de Desporto, quando ela já despertava a atenção dos grandes veículos de imprensa.
Kay bem sabia do que falava. Afinal, vencera aquele braço de mar duas vezes, a primeira, extraoficialmente e em tempo menor do que o válido, pois ainda na fase de treinamento e sem o crivo, portanto, da Associação dos Nadadores do Canal, organismo que estabelece normas e regras, fornece barco, piloto e observador mediante pagamento, é claro. Este último encarrega-se da anotação do roteiro em zigue-zague (artifício para a superação das fortes correntes, o que, no caso em pauta, fez 40 quilômetros virarem 70), do número de braçadas por minuto e da oferta de alimentos aos que se lancem à travessia: sopa e chocolate quente de hora em hora, numa madeira, sem que os atletas possam tocar no barco que os acompanham com técnicos e médicos. Nossa Kay tinha essa assistência em casa: o pai treinador e a mãe recém-formada em Medicina.
Entrou na água gelada em Dover, Inglaterra, às 10h57, e saiu em Wissant, França, às 22h53, ou seja, após 11 horas e 36 minutos de nado ininterrupto. O coração de menina batia, normalmente, no compasso da sua juventude. Espantosamente, teria fôlego para a volta ao ponto inicial.
A Kay, por quem fui há pouco localizado, é médica, como Fátima, sua mãe. Concluiu Psicanálise há dois anos e, depois disso, Psiquiatria. Hoje divorciada, deu à luz os filhos Fábio e Raíssa. Diga-se que largou o esporte muito cedo e, desencantada, recusou o convite para compor uma dessas equipes olímpicas. Acho que fez bem.
Deixa-me te contar uma coisa, querida. Ao levar flores ao túmulo de Seu Juca e Dona Vininha, o casal que me pôs no mundo, percebi a vizinhança surpreendente do nosso Sales, teu falecido pai, quase frente a frente, naquela alameda do Cemitério Senhor da Boa Sentença. Atinei, maravilhado, que a vida e a morte teimam em nos unir. Beijão meu e de Miriam para ti e os teus. E vamos combinar umas tapiocas, aqui em casa.