De quantas traições é feita a história... Se fôssemos radicalizar, poderíamos até dizer que a história é feita, tem sido feita, a part...

Traições

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De quantas traições é feita a história... Se fôssemos radicalizar, poderíamos até dizer que a história é feita, tem sido feita, a partir de traições. Maiores ou menores, explícitas ou camufladas, não importa, mas sempre traições. De homens, de mulheres, de civis, de militares, reais ou inventadas, de todos os tipos. A literatura ficcional também é feita de traições, pelo menos boa parte dela, talvez a melhor. Que coisa é essa, tão presente – e com tanto poder?

Na origem do mundo, segundo o Livro do Gênesis, lá está ela, com as criaturas originais traindo o Criador em sua confiança divina. Começo mais eloquente e significativo não poderia haver. E se tiveram o desplante e a coragem de trair o próprio Deus, nenhum pudor tiveram os humanos de trair seus semelhantes,
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de todas as maneiras e por todos os motivos.

Estou a ler agora o livro do argentino Ariel Dorfman, de título O longo adeus a Pinochet (Editora Companhia das Letras). Nele, vemos como o general traiu descaradamente o presidente chileno que o nomeara comandante do Exército. Num dia, jurou fidelidade ao chefe constitucional do país; no outro, liderou o golpe de Estado que o destituiu e matou. Política, ambição pessoal, falta de caráter, tudo misturado em ações mascaradas de grandeza, de falsa grandeza, na verdade. Assim também com o nosso Deodoro da Fonseca. Compadre e homem da intimidade familiar do imperador brasileiro, de quem recebera reiteradas demonstrações de prestígio e afeição, saiu da cama de doente para se por à frente do movimento militar que derrubou o monarca, seu amigo. E pior: permitiu a imperdoável e desnecessária humilhação que enxotou do país, como banais criminosos, em plena madrugada chuvosa e sob risco de morte no mar turbulento, o idoso casal destituído. Tamanha dor e tamanho estresse logo cobraram seu preço altíssimo: dias depois, parou o frágil coração de Dona Tereza Cristina, sob o olhar atônito de um D. Pedro precocemente envelhecido. Em nome da velha amizade,
Deodoro poderia ter se oposto abertamente à conspiração republicana ou simplesmente não ter aderido, mantendo-se à parte, até por conta de seu estado de saúde. Mas não: certamente movido por ambições, fez questão de trocar o pijama pela farda e a honra pelo poder. Entrou na história, sim, mas com essa mancha inapagável.

Há traições surpreendentes, como essa de Deodoro, e outras plenamente previsíveis, em regra protagonizadas por sujeitos igualmente previsíveis. Um exemplo me vem à mente com o então deputado federal paranaense Onaireves Moura, do PTB. Na noite de 16 de setembro de 1992, quando o impeachment de Fernando Collor já era mais uma realidade que uma simples previsão, o parlamentar (do baixo clero, lembre-se) ofereceu em sua casa brasiliense um faustoso jantar em homenagem ao combalido presidente, jantar, ostensivamente de solidariedade política e de apoio, a que aderiram inúmeros outros congressistas, além de figuras importantes do país. Discursos e abraços numerosos afagaram o governante ameaçado e lhe deram, claro, uma certa esperança de salvação. Pois apenas treze dias depois, em 29 de setembro, a Câmara aprovou, por 441 a 38 votos, o impedimento presidencial, e o “patriota” Onaireves votou, sem se constranger, a favor do impeachment de seu festejado conviva.

Há também os traidores profissionais. Creio que o maior deles tenha sido Joseph Fouché, o astuto francês brilhantemente biografado por Stefan Zweig. Chamado por Balzac de “gênio” e por outros de camaleão, ele realmente foi um mestre na “arte” da traição, da dissimulação e da sobrevivência física e política. Começou, pode-se dizer, traindo Deus, ao abandonar a vida religiosa que inicialmente abraçara. Depois, já no palco político, trai a realeza, ao votar (falando bem baixinho) a favor da execução de Luís XVI; posteriormente, ao sabor das circunstâncias e dos interesses, trai Robespierre e trai Napoleão, que o tinha enobrecido com o título de Duque de Otranto, ele que começara a vida como um humilde e anônimo plebeu.
Fr. School, S.XIX
Traiu também o célebre Talleyrand e muitos outros menos notórios a quem parecera inicialmente fiel, fazendo da deslealdade contumaz a arma silenciosa com que abateu despudoradamente concorrentes e adversários. Uma existência inteira dedicada às traições repetidas – e aperfeiçoadas pela repetição. Talvez um gênio, sim, mas do mal.

De traições amorosas e amicais, nem falemos, tantas são. Traições nos negócios, cometidas por sócios e funcionários desleais. Traições artísticas e culturais de tantos tipos: universidades e instituições cultas estão cheias delas, em todos os níveis. Traições fictícias, como a da inocente Desdêmona, vítima da inveja de Iago por Otelo. Traições do destino, como a que privou Tancredo da posse na presidência da República, tão merecida depois de tanta luta. Traições de filhos e filhas, irmãos e irmãs ambiciosos, nas heranças amaldiçoadas. Traições, traições, traições...

André Comte-Sponville, o filósofo francês contemporâneo, escreveu páginas e páginas sobre a fidelidade, a virtude contrária à traição. Afirmou que esta virtude “está no princípio de toda moral; ela é o contrário da ‘derrubada de todos os valores’”. Sim, porque não pode realmente haver nenhuma moral sem lealdade – e sem gratidão. A não ser a dos canalhas de profissão, como os áulicos contumazes. Ele escreve uma coisa interessante: não devemos confundir fidelidade com exclusividade. “Ser fiel aos amigos não é ter um só. Ser fiel às suas ideias não é se contentar com uma só”. Mas não se pode, é claro, servir a Deus e ao diabo ao mesmo tempo sem enganá-los (ou traí-los) simultaneamente.

S. A. Hart, 1855 (adapt.)
O certo é que a fidelidade, seja de que tipo for, quase sempre exige sacrifício, até mesmo da própria vida, em muitos casos. A fidelidade exige antes de tudo caráter do fiel e é o caráter que faz com que o sacrifício seja aceito corajosamente. A maior das fidelidades, creio, é a que se presta a si mesmo e vem expressa na bela frase: “Ao rei, tudo, menos a honra”. No fim, nas grandes e pequenas traições de todas as espécies, o que está em jogo, da parte do potencial traidor, é sempre a escolha – consciente – de ser ou não ser, na vida e no mundo, na aldeia ou em Paris, um Joseph Fouché.

E todo cuidado é pouco, pois dizem os especialistas que “trair e coçar, é só começar”.

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