Gostaria de lembrar que o Brasil concentra entre 12 e 16% do volume total de recursos hídricos do nosso Planeta Azul e parte dos maiores recursos hídricos renováveis do mundo (41.281 metros cúbicos anuais por habitante), pertence a nosso país, segundo a Food and Agriculture Organization (FAO). Entretanto, esses recursos não são distribuídos de forma homogênea e se encontram ameaçados por fatores socioeconômicos diversos. A título de exemplo, 16,7% da área do país está situada no Semiárido Nordestino.
Analisemos inicialmente o caso do Nordeste. Quando uma determinada região possui uma disponibilidade hídrica menor que 1.500 metros cúbicos por habitante por ano, se admite que este local está em uma situação crítica. É o caso dos estados de Pernambuco (1.270 m3/hab.ano) e Paraíba (1.394 m3/hab.ano). Entre os 26 estados da federação, Pernambuco ocupa o último lugar e a Paraíba, o penúltimo.
No caso da agricultura de uma maneira geral, sabemos também que o Brasil usa cerca de 69% da água doce para irrigação, em grande parte com muito desperdício (a média mundial é da ordem de 70%). Cada metro cúbico de água usado pela indústria e pelo setor de serviços gera 70 a 200 vezes mais riqueza do que um metro cúbico usado para agricultura. Com a grande escassez de água prevista no Planeta, os recursos hídricos automaticamente serão direcionados para as áreas urbanas. Consequentemente, a tendência no futuro deverá ser e terá que ser: “Água doce para as cidades e águas residuais tratadas para a agricultura”.
Segundo dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui 5.570 munícipios, 70% dos quais são pequenas cidades, o que significa que em 3.900 deles vivem menos de 20 mil habitantes. Praticamente todas essas pequenas cidades não possuem sistemas de esgotamento sanitário.
Por isso, não devemos esquecer dos menos favorecidos, dos 33 milhões de brasileiros sem acesso à água potável e dos 94 milhões que não são servidos por redes de esgotos. E o pior, os que são beneficiados com redes coletoras, a maioria deles, não são contemplados com tratamento de seus dejetos, fazendo com que a poluição dos esgotos brutos se concentre cada vez mais por ocasião do despejo final nos corpos receptores. E, note-se bem, não estamos considerando a população rural. Desde o período áureo do Banco Nacional de Habitação (BNH), que o governo só tem investido em abastecimento de água, esgotos e drenagem nas áreas urbanas.
Por outro lado, sabemos que as causas de morte nos países industrializados devido a doenças infecciosas e parasitárias são da ordem de 8%, enquanto que nos países em desenvolvimento, este valor supera 40%.
Infelizmente, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) só se refere à eliminação dos coliformes fecais (coliformes termotolerantes). Estes são problemas dos países desenvolvidos. A dose mínima infectante das bactérias é de um para 10.000, enquanto que para os helmintos é da ordem de um para 10. É justamente o nosso caso, principalmente para os brasileiros que vivem nas regiões mais pobres do país. A nível mundial, mais de um bilhão de pessoas são infectadas por ascaridíase. A fêmea do Ascaris lumbricoides, o maior dos nematoides (roundworm), a popular lombriga, chega a produzir 200 mil ovos por dia. O principal vetor dessas doenças é o esgoto doméstico sem tratamento, lançado nos rios e/ou no solo, ou tratado de forma inadequada.
Também já estamos cansados de saber que na Região das Américas, 90% dos esgotos brutos são despejados sem nenhum tipo de tratamento nos rios, mares e terras agrícolas. Estima-se que quatro milhões de hectares de terras agrícolas são irrigadas com águas residuais contaminadas com patógenos, gerando graves problemas de saúde pública e poluição ambiental. A evacuação indevida das descargas dos sistemas de esgotos contamina os rios e difunde enfermidades. Na prática, grande parte dessas águas poluídas é desviada para a irrigação na agricultura, produzindo excelentes alimentos, provavelmente muito contaminados.
Alguns colegas engenheiros, quando são perguntados se é possível a utilização de esgotos tratados na agricultura, respondem que esta solução não vale a pena, pelo fato desta iniciativa prejudicar a saúde da população que irá ingerir os alimentos produzidos com o auxílio desses despejos. O que se sabe é que, na prática, muitos agricultores quando não possuem outra alternativa, usam efluentes de esgotos brutos em larga escala para adubar suas plantações.
Certos professores da área da Engenharia Sanitária, após orientar os alunos sobre os vários tipos de tratamento de esgotos existentes, ainda indicam que o destino final desses efluentes deverá ser um corpo de água, ou raras vezes, a descarga no solo. Porém é de conhecimento geral que nenhum desses processos eliminam totalmente os microrganismos e a matéria orgânica existentes no esgoto bruto.
Por que a maioria das empresas de saneamento básico não exige que os projetistas de sistemas de esgotos sanitários apresentem mais uma alternativa para que os efluentes tratados, sejam direcionados para a agricultura e/ou aquicultura, em vez de serem lançados diretamente nos rios e/ou mares?
A escassez de água associada à deterioração da qualidade dos corpos de água induz à busca de fontes hídricas complementares, revelando o reuso dos esgotos tratados como uma solução alternativa em potencial. Com essa política de reuso, elevados volumes de água potável podem ser economizados com a utilização de água de qualidade inferior, geralmente esgoto doméstico tratado, para atender a fins que prescindem da potabilidade.
O Brasil utiliza muito pouco do potencial de suas águas residuais para reuso agrícola. A utilização de águas residuais tratadas contribui para uma gestão mais sustentável dos recursos hídricos porque ajuda a aumentar os recursos hídricos necessários, satisfazendo as necessidades presentes e futuras de usos mais nobres, além de reduzir a vazão das águas residuais tratadas descarregadas nos corpos de água receptores, protegendo os ecossistemas e diminuindo a quantidade de poluentes lançados no solo e no ambiente aquático.
As vantagens do reuso serão enormes, principalmente para o Semiárido do Nordeste, onde existem muitos rios que não são perenes (nonflow rivers). Além de não contaminarem os corpos receptores, poderia ser utilizado grande parcela de adubos orgânicos naturais, com economia na compra de insumos químicos, gerando grande fonte de emprego para as pessoas mais necessitadas, com a criação de cooperativas para os agricultores, melhorando consideravelmente a saúde da população.
Os principais contaminantes dos esgotos domésticos são os coliformes termotolerantes (coliformes fecais) e os ovos de helmintos e cistos de protozoários. Infelizmente, os ovos de helmintos e cistos de protozoários, não são eliminados por nenhum processo sofisticado de tratamento de esgotos, mesmo se fossem aplicadas cloração e/ou radiação ultravioleta nos efluentes tratados. O Brasil é privilegiado por ser um país de clima tropical, pois as bactérias se desenvolvem bem mais rapidamente do que nos países de clima temperado. Os principais tipos de tratamento de esgotos existentes funcionam por ação de microrganismos e, dentre as alternativas de tratamento biológico, as lagoas de estabilização são o melhor sistema natural de tratamento de esgotos existente.
Nesse sistema, as bactérias decompõem a matéria orgânica contida nos esgotos e as algas utilizam esses compostos juntamente com a energia da luz solar para a fotossíntese, liberando oxigênio para o meio líquido. O oxigênio é, por sua vez, assimilado pelas bactérias, fechando assim o ciclo da natureza.
A fotossíntese depende principalmente da radiação solar direta. No caso do Nordeste, João Pessoa e Campina Grande recebem radiação solar na faixa de 4,89 kWh/m2.dia, ideal para o funcionamento das lagoas de estabilização. No interior da Região temos valores ainda mais altos. Esse valor é próximo ao observado no deserto de Saara, com radiação solar correspondente a 6 kWh/m2.dia.
Os sistemas de tratamento de esgotos por meio de lagoas podem produzir efluentes que cumprem com as Diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), tanto para a qualidade bacteriológica, como para a eliminação de ovos de helmintos e cistos de protozoários. Seus efluentes podem ser usados na agricultura e na aquicultura, principalmente em países de clima tropical.
As concentrações médias típicas de nitrogênio (N) e fósforo (P) de efluentes de lagoas de estabilização são 15 mg/l e 3 mg/l, respectivamente. Considerando intensidade de irrigação na agricultura de 20.000 m3/(ha.ano), em uma zona árida, é possível obter taxa de aplicação de nitrogênio igual a 300 kg/ha e para fósforo, 60 quilos por hectare, com consequente economia dos principais fertilizantes químicos usados na agricultura.
No nosso entender, bastaria um simples decreto do Governo Federal para obrigar que as empresas de saneamento incluíssem durante a contratação de projetos de sistemas de esgotos sanitários, a exigência para que as firmas, sempre que fosse viável, apresentassem como uma alternativa para o destino final dos efluentes tratados, a utilização do reuso direcionado para a agricultura ou para a piscicultura.
Essa seria uma solução muito simples, que poderá influenciar e contribuir enormemente na melhoria e na qualidade de vida dos milhões de brasileiros que ainda não foram contemplados com esses serviços prioritários e tão essenciais para a proteção da saúde pública.
Não se esqueça: a água doce existente no mundo é finita. Existe apenas uma grande reciclagem por parte da natureza. Na hora de matar sua sede, pare um pouco para pensar. Talvez a água que você irá beber, já possa ter sido tomada por um dinossauro.