Presente de aniversário

Faz bem se ele resolver sair, nesta chuva que escorre rápida pelos regos e açoita vidraças. Precisa comprar o presente para o aniversário do próximo sábado. A bota que gostava de usar está com cicatrizes de remendos. Ainda trocou o pijama azul pelo casaco de couro, ficou pestanejando, a olhar as bátegas caírem com estrondo, enquanto a mulher, o rapaz e a moça, friorentos, se agasalhavam nos quartos e nos cobertores. Ninguém desejava que ele saísse numa tarde daquelas balançada pelo toró ameaçador em permanecer noite adentro. Não queria deitar-se, embora escutasse o apelo da família enrodilhada nos abrigos domésticos.

“Depois irei, se a chuva amainar.” Teria de comprar o presente para a mãezinha paralítica. Todos pensavam em homenageá-la, como o faziam todos os santos anos, mais ainda,

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nos seus suculentos oitenta de idade, em plena forma, gaiata, uma adolescente vibrante. Basta dizer que ela acompanhava novelas e contava, em detalhes, a urdidura de cenas como um jovem não o faria. E as anedotas que, ao transcorrer da vida, fora amealhando na memória invejável! Nascera para humorista, mas ficara reservada a festinhas das proximidades da cidade interiorana, onde nascera sem qualquer desejo em ocupar palcos ou espaços de maior extensão. Vitoriosa em sua jornada fazia bolinhos para sustentar com renda própria os filhos que criara com sacrifício de toda mãe solteira.

Os maridos, um para cada rebento, se desmancharam feito bolas de sabão. Sumiram, explodiram no ar, num sumiço sem volta. Jamais procurou saber por onde andavam. Estariam nos quintos do inferno, dizia, revoltada sem amargor de saudade ou amor chocho. Falavam dela, pessoas desocupadas, dizendo que se amigara com um sargento e, vez por outra, sumia com ele para uma cidade vizinha. Pois, era mesmo, nunca negou a seu ninguém.

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Desse conúbio clandestino, o último por sinal, nascera o filho mais estimado de todos, isto é, o que olhava a chuva, lembrando tudo agora narrado, em suspiros, entre um cochilo e outro. Rapaz de bem, trabalhador, criado sem pai ( o sargento fora para Fernando de Noronha, no tempo da Grande Guerra e nunca mais voltara), pra variar... A velhinha sempre foi um exemplo de trabalhadeira, não enjeitando, além de fazer bolinhos de massa de mandioca, outras atividades.

Os irmãos do nosso amigo que olhava a tempestade, um morreu de tifo, outro era médico lá pros lados do Amazonas (dava notícias em rápidas comunicações). Este nunca visitava a mãezinha, postava alguma quantia para auxiliá-la nos remédios, etc. De sorte que ninguém, afora o contemplativo da chuva forte e a família visitava a anciã, dando-lhe um aconchego no aniversário. A chuva amainou. Ele saiu com o guarda-chuva e comprou o presente da mãe. Chegou radiante, mas encontrou a mulher triste, abraçada aos filhos. “Que foi?” Ela não irá mais fazer aniversário. Nunca mais. Bateu as botas surradas e se dobrou na cadeira onde estivera. A chuva aumentou.

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