“Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo?”, questiona Drummond no artigo “A educação do ...

Peculiaridades da poesia infantil

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“Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo?”, questiona Drummond no artigo “A educação do ser poético” (1974). A comparação entre as crianças e os poetas é quase um clichê. Essa analogia ocorre pelas frequentes associações tão caras ao universo infantil. Tanto a criança quanto o poeta manifestam o assombro e uma leitura especial diante de acontecimentos que, para muitas pessoas, parecem banais ou corriqueiros, passam até despercebidos.

Segundo Maria Antonieta Cunha (1983, p.93),

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[...] é muito comum compararmos a criança e o poeta. Realmente, o mundo infantil é cheio de imagens, como o campo da poesia. A fantasia e a sensibilidade caracterizam a ambos. [...] O predomínio da linguagem afetiva existe na poesia e na criança. A primeira forma de expressão do homem em sua história é a primeira a encontrar ressonância na alma infantil.

A percepção de realidade da criança aproxima-se da poesia por meio das metáforas. Sabe-se que esse recurso de linguagem tem como função estabelecer uma comparação implícita. Na falta de conhecimento de mundo, a criança precisa suprir essa ausência. É através de associações, muitas vezes inusitadas, que ela descreverá a realidade – tal como ela a interpreta.

Contrapondo-se à ideia de que as crianças são naturalmente poetas, Cosem (1980) considera essa visão como idealista demais do problema, porque para que haja poesia, é preciso haver trabalho. E, para que a linguagem se materialize de fato, de maneira concreta, é necessário o domínio da linguagem, o que na criança ainda não se encontra maduro. Não há dúvida de que os textos produzidos pelo público infantil são realmente interessantes e divertem, mas não podemos dar-lhes o status de poema.

Considera-se que a condição de poeta se dá pela consciência de que este tem do seu ofício, como se nada fosse aleatório – ledo engano por estarmos tratando de linguagem e esta também se manifesta no nível do inconsciente.

Dizer à primeira vista que as crianças são poetas é negar o trabalho que terão de realizar para o serem verdadeiramente e isso pode levar os educadores a um impasse e valorizar um pequeno número de privilegiados.
COSEM, 1980, p. 44
Todavia, questiona-se se a escola estaria cumprindo o papel de ao menos promover o espaço para que a criança maneje as palavras de forma que não haja tolhimento de sua capacidade criativa. Quanto de espaço é dado nessas instituições para que o público infantil se comungue com este gênero literário?

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Drummond de Andrade
Mas, se o adulto, na maioria dos casos, perde essa comunhão com a poesia, não estará na escola, mais do que em qualquer outra instituição social, o elemento corrosivo do instinto poético da infância, que vai fenecendo, à proporção que o estudo sistemático se desenvolve, até desaparecer no homem feito e preparado supostamente para a vida?
ANDRADE, 1974.

Essa sistematização do ensino, de motivação utilitária, reduz o ensino de poesia a exercícios de memorização, regras de metrificação, terminologias. Desnecessário dizer que aprender a escandir versos pouco ou nada favorecerá ao leitor um apreço pelo gênero e tampouco ser imposto às crianças que decorem poemas considerados complexos. Ainda que isso seja relevante para o desenvolvimento vocabular, não se acredita que isso aproximará de forma eficaz o leitor-mirim do texto poético.

Crê-se que não é papel da escola formar poetas, mas leitores competentes, críticos, que vão além da superfície do texto, daquilo que está explícito. A escola tem fracassado em ambos os papéis – nem forma leitores competentes, sob uma perspectiva linguística; nem desenvolve o gosto pela leitura.

Mais do que “ensinar poesia”, caberia, antes, discutir o termo “ensinar”. O caminho seria o de criar uma “impregnação” ou uma “sensibilização”, “aproximação”, ou “leitura”, do que propriamente de “ensino”.
AVERBUCK, 1993. p.70
A primeira condição indispensável para o educador que almeja inserir a criança no universo da poesia é ter conhecimento significativo do gênero. Isso não quer dizer ser um especialista, mas, pelo menos, ainda que tenha lido poucas obras, tenha feito essas leituras de forma proveitosa. Uma leitura nessas perspectivas nos levaria a, conforme sugere Pinheiro (2002):


Não é difícil conhecer os mais populares poemas de autores canônicos. Uma consulta rápida em um site de busca, ou antologias, já seria de grande valia para o educador. É necessário disposição. A recorrência de temas significa que há assuntos que já foram “testados” e “aprovados” muitas vezes. Partindo dessa hipótese, é provável que os poemas
nos apresentem elementos semelhantes e que mantenham uma intertextualidade. Comparar os poemas e mostrar às crianças as representações distintas ou a similitude que os textos contêm é uma atividade importante para desenvolver o senso crítico.

O mais laborioso para uma leitura eficaz, talvez, seja o educador reservar um tempo para si e se autoquestionar se o poema que ele leu o emocionou de fato. Sucede que esse educador talvez tenha sido vítima de um sistema educacional que não considera as múltiplas personalidades que se encontram numa sala de aula, ou pais que não enxergam cada filho como um indivíduo com gostos distintos e impõe-lhe uma tarefa que nem a eles mesmos os apraz. Diante do exposto, devem ser consideradas quais são as referências que circundam a criança. Além disso, há quem a prive do contato com vários poemas, por achar que esta não compreenderá o texto por questões vocabulares. Todavia:

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Maria A. Cunha
Entender a poesia não é o essencial. Basta lembrar o fato de muitas vezes não compreendemos a letra de uma canção estrangeira e, mesmo assim, apreciamos, porque “a poesia é para ser sentida, muito mais que compreendida. Uma das principais características do fenômeno poético é exatamente a ambiguidade, a conotação.”
CUNHA, 1983, p.96

Por isso, torna-se fundamental que a criança tenha contato com vários poemas/poetas para que o seu conhecimento se alargue e não se restrinja a um tipo de poesia que a desagrada, levando-a a se afastar quase que em definitivo do gênero. As crianças estão cada vez mais desenvoltas, críticas, tendo acesso a várias linguagens. A elas já foi dado o direito de escolher, e não será por uma influência de um adulto que ela a conceberá uma poesia como de qualidade se não se convencer ou a convencerem do porquê de o texto ser bom.

Em se tratando de literatura infantil, importante é lembrar que a poesia se propõe a falar a alguém que, de fato, está olhando o mundo pela primeira vez. O vínculo que o texto propõe do leitor com o exterior, nessa perspectiva, se configura de uma maneira muito mais complexa; o poema está lidando com um tipo de destinatário cuja fase etária indelevelmente influenciará a forma como ele se liga com o mundo que o cerca pelo resto de sua vida (pois se trata de um período formador de personalidade, de sistemas psíquicos e de desenvolvimento físico). Por essa maneira, a poesia faz tanto sentido à criança, colaborando para sua convivência com o mundo ao carregar de significado suas experiências.
KLAUCK, 2009, p.23
Conhecer a infância e a maneira como o texto poético manifesta o interesse em comunicar com a criança é fundamental para que não ocorram impasses no momento em que os poemas são apresentados ao leitor-mirim, cabendo ao educador assumir o compromisso de analisar detidamente os poemas. O cuidado na escolha das poesias não se resume à adequação à faixa etária a que se destinam, mas em investigar os aspectos linguísticos, imagéticos, rítmicos, enfim, ao quanto de lúdico esses poemas reúnem. Cada um desses aspectos deve contribuir para aproximar, de forma estimulante, o pequeno leitor.

Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da criança como se fosse uma capa mágica, e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto.
HUIZINGA, 2001, p.133
Então, que seja admitido que o olhar da criança está menos desgastado que o do adulto, mas não sem conferirmos no próprio texto poético como isso se dá por meio dos aspectos lúdicos apreendidos pelos recursos de linguagem.

Nos primeiros anos de vida, sobretudo, a criança admira-se com os jogos verbais, a sonoridade, o ritmo. Segundo Ligia Averbuck (1993, p. 74)
Não confundir ritmo com rima. Embora a rima seja uma forma de manutenção do ritmo, ela não é imprescindível na elaboração de um poema, exemplo disso é a existência de belos poemas sem rima, os chamados versos brancos.
“é por isso que, muitas vezes, ela [a criança] será capaz de repetir e apreciar um poema, sem mesmo aprender toda a extensão de seu significado. A primeira fase de seu contato com a poesia é, portanto, a do domínio das sonoridades”.

Por isso que os sons, a melodia, o ritmo, o tom, a alternância entre sons tônicos e átonos devem ser considerados quando alguém lê poemas para uma criança. Essa atividade deve estar associada às modulações de voz e expressões corporais, ponderando acerca dos sinais de pontuação para que possam se manifestar na fala, mas sobretudo dar uma interpretação atenta à forma e ao conteúdo do poema para exprimir com eficácia aquilo que se possa apreender do texto.

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Octavio Paz
Sustentar que o ritmo é o núcleo do poema não quer dizer que este seja um conjunto de metros. A existência de uma prosa carregada de poesia e a de muitas obras corretamente versificadas e absolutamente prosaica, revelam a falsidade dessa identificação. Metro e ritmo não são a mesma coisa. Os antigos retóricos diziam que o ritmo é o pai da métrica. Quando um metro se esvazia de conteúdo e se converte em forma inerte, mera casca sonora, o ritmo continua engendrando novos metros. O ritmo é inseparável da frase; não é composto só de palavras soltas, nem é só medida ou quantidade silábica, acentos e pausas: é imagem e sentido.
PAZ, 1971, p. 13

As figuras de linguagem contribuem para a organização rítmica e melódica, a saber: aliterações, assonâncias, paronomásias, onomatopeias. A proposta é observar como esse material linguístico promove a ludicidade, estimulando a criança ao imaginário, à reflexão sobre a linguagem com a qual tem contato. Essa ruptura com o usual, que nos causa encantamento.

E esse “encantamento” é constantemente formulado na infância através das metáforas:

[...] a criança que, enquanto brinca, dá um nome ao índio, ao polícia, ao ladrão, ao avião ou ao foguetão, fá-los existir. Por isto, e creio que com muita frequência, a função da metáfora é uma função lúdica.
COSEM, 1980, p. 171
Outro nível que merece destaque é o sintático. Segundo Bordini (1986), referindo-se aos poemas infantis, geralmente os versos se apresentam na ordem direta e apenas se faz necessária a inversão das frases para efeito de ritmo ou rima.

O gênero poético é marcado pela associação entre ritmo e imagem, que se unem com o objetivo maior de expressar sentimentos e sensações. Na linguagem poética, os seus recursos tendem a construir uma simbologia, que se materializa a partir da plurissignificação e da polissemia, que são operadores fundamentais na medida em que comportam emoções, conforme a perspectiva de Mello (2002).

É por meio dos sons e do ritmo que a linguagem torna-se representação do mundo. Não o constitui, de fato, evidentemente, mas o apresenta e por isso de tal importância para a construção cognitiva de uma criança.

A poesia infantil, conforme Bordini (1986) promove o mundo através de um olhar inusitado, que apela à construção de sentidos, como se estivesse conhecendo os objetos pela primeira vez. Nessa perspectiva, considera-se que forma e conteúdo são indissociáveis, porque trabalham juntos para que seja promovido estranhamento do que cerca o leitor-mirim e, a partir daí, ele apreenda o mundo pela sua leitura do mundo.

Percebe-se que, ao mesmo tempo em que a poesia cumpre o papel de revelar o mundo pela linguagem, também a encobre. E eis que cumpre ao ritmo ser o agente de uma função básica – criar expectativas no leitor, conduzindo-o a um fim. O ritmo não é mero acessório, mas um apoio entre o as palavras e o significado, que é motivado por aquele. De acordo com Paz (1982) não há poema sem ritmo, porque ele é a essência que ditará a significação do poema.

O que se deve ater é que a sonoridade não é um instrumento de “enfeite”, mas a essencialidade do poema e que o educador deve ter a sensibilidade de reconhecer que esses recursos causam efeitos nas crianças, que são muito sensíveis à sonoridade. Não reforçar o ritmo e a rima durante a leitura é um desserviço à criança, que espera que o texto lhe transporte a uma novidade, ao imagético, ao lúdico e, consequentemente, a desperte para o prazer do texto.
Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. A educação do ser poético. Arte e Educação. Ano 3, n.15, out. 1974. p.16
AVERBUCK, Lígia Morrone. A poesia e a escola. In: Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 11ed. Org: Regina Zilberman. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1993.6
BORDINI, Maria da Glória. Poesia Infantil. São Paulo: Ática, 1986. COSEM, Michel (Org.). O poder da poesia. Trad. De Maria Helena Arianto. Coimbra: Almedina, 1980.6
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura infantil: teoria e prática. São Paulo: Ática, 1983.6
HUIZINGA, J. Homo Ludens. 5ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.6
KLAUCK. Ana Paula. A poesia fala com a criança: uma reflexão sobre as características da poesia infantil e sua relação com o leitor. 2009. 90. Dissertação. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.6
MELLO, Ana Maria Lisboa de. Poesia e imaginário. Porto Alegre: PUCRS, 2002.6
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 1971.6
______. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.6
PINHEIRO, Helder. Poesia na sala de aula. 2ed. João Pessoa: Idéia, 2002.

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