Peço perdão aos leitores, por voltar insistentemente ao tema, tão instigante, quanto importante, dos espaços habitados por Augusto ...

Onde está o número 17?

joao pessoa antiga
Peço perdão aos leitores, por voltar insistentemente ao tema, tão instigante, quanto importante, dos espaços habitados por Augusto dos Anjos, na capital. O fato é que estou tentando montar um quebra-cabeça, de que o descaso, com o escárnio que lhe é peculiar, subtraiu várias peças.

O texto desta semana, com um título misterioso – Onde está o número 17? –, diz respeito a um dos lugares onde o poeta morou, nesta capital. Em carta à mãe, Dona Córdula, chamada carinhosamente pelo poeta de Sinha Mocinha, datada de 16 de julho de 1908, Augusto dos Anjos noticia que teve de mudar-se, às pressas, da casa onde morava, para outra residência,
situada à Rua Tambiá, número 17. A pressa da mudança deveu-se ao fato de que a casa onde residia ameaçava cair sobre ele, o irmão, Aprígio, e o tio, Alfredo, irmão de D. Córdula (Ademar Vidal, O outro eu de Augusto dos Anjos, p. 166-7):

“Comunico-lhe que, anteontem, nos mudamos para uma casa do Tambiá. Semelhante mudança foi feita às pressas, na celeridade característica dos intimidados perante qualquer ameaça periculosa. É que vieram nos avisar que a casa onde estávamos não tinha a menor segurança e, em breve, cairia desapiedadamente sobre as nossas carcaças.

Então, foi que a verdade se nos apresentou, debuxada em todas as suas linhas horrorosas. Incontinenti, eu, Aprígio e Alfredo saímos, no intuito de revolver toda esta cidade, no encalço de algum lar que nos abrigasse. Após decepções feias, encontramos esta casa aqui no Tambiá nº 17.”

Augusto dos Anjos não informa, na carta, a rua em que se situava a casa em queda, mas podemos supor que era na Rua Direita, porque foi a rua em que ele praticamente se fixou entre os anos de 1908 e 1910, quando morou em João Pessoa, ainda chamada Paraíba. A suposição se faz mais forte, tendo em vista que ele se refere ao fato de que a mãe não simpatizava com o Tambiá ou com a Rua Tambiá, preferindo morar na Rua Direita, atual Duque de Caxias, ou nas Trincheiras, como sabemos uma continuidade dessa rua,
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D. Córdula, mãe de Augusto dos Anjos
onde D. Mocinha efetivamente morou, depois da morte do poeta (idem, p. 167):

“Sei que Vm.cê não simpatiza muito com o Tambiá, motivo pelo qual, se eu encontrar alguma outra casa nas Trincheiras, ou Rua Direita, em condições idênticas às desta em que ora estamos, mudar-me-ei, se tal se conformar com a sua vontade.”

A partir do mês de agosto de 1908, D. Córdula veio morar com Augusto e os filhos na Rua Direita (carta de 23 de julho de 1908, p. 167. As cartas à mãe se interrompem, após 31 de julho de 1908, só retornando em 17 de setembro de 1910, quando o poeta já se encontra no Rio de Janeiro), visto que Ademar Vidal faz referência à presença dela, quando, por nove meses, foi aluno privado de Augusto dos Anjos, seu vizinho de “parede-meia” (idem, p. 10):

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Ademar Vidal, retratado por C. Portinari
“O tom de sua conversa comigo – de resto, eu não dizia nada, ficava em silêncio absoluto, limitando-me apenas a ouvi-lo – tomava tamanhos requintes que, por frequentes vezes, Dona Mocinha chegava à porta da sala, imprevistamente, desculpando-se:
⏤ Ora, Augusto, pensei que você estivesse falando com o Governador”
idem, p. 14.

A suposição é reforçada pelo local onde teria sido a casa da Rua Tambiá, pois o número 17, é quase na fronteira com a Rua Direita. Os problemas da exata localização aparecem agora. Qual era o limite da Rua Tambiá, atual Deputado Odon Bezerra? Onde se situava o número 17? A numeração atual é a mesma da época de Augusto? Diante de tantas mudanças no traçado original da cidade, fica difícil responder às perguntas e estabelecer, com precisão, o endereço passageiro de Augusto dos Anjos, naquela rua.

Início da Rua Tambiá (atual Odon Bezerra), na confluência com a Rua Joaquim Nabuco, na capital da Paraíba.
Esta rua, atualmente, inicia na confluência com uma transversal, a Rua Joaquim Nabuco. Se considerarmos a numeração atual, poderíamos supor que a antiga Padaria Flor das Neves, na esquina da Odon Bezerra com a Joaquim Nabuco, seria o número 17. Um problema, no entanto, se apresenta. O endereço da padaria é Rua Joaquim Nabuco, número 16, embora o número não esteja lá... O problema, porém, nos dá uma pista. Como a padaria está na esquina, é provável que, entre ela e o local onde funciona a Farmácia Vitalis, hoje número 29 (o número não se encontra fixado...), existisse o número 17. Depois da farmácia, vem a Igreja de São Vicente de Paulo, sem número que a identifique, e, em seguida, o casarão de número 71.

[1] Padaria Flor das Neves, na confluência da Rua Odon Bezerra com a Joaquim Nabuco; [2] Farmácia Vitalis, nº 29, continuidade da Padaria Flor das Neves, na Rua Odon Bezerra; [3] Igreja São Vicente de Paulo, na Odon Bezerra, sem número, após a Farmácia Vitalis; [4] Casarão 71, na Odon Bezerra, após a Igreja São Vicente de Paulo.
A continuidade da Odon Bezerra, passada a Joaquim Nabuco, é o trecho que corresponde, nos dias atuais à Praça D. Adauto, sendo continuada pela Vigário Salem, que se finda na Praça D. Ulrico, na lateral da Catedral de Nossa Senhora das Neves.

[5] Praça Dom Adauto; [6] Rua Vigário Salem, com a visão da fachada lateral da matriz Nossa Senhora das Neves.
É ainda de se perguntar se na época em que Augusto dos Anjos residia na capital, esse traçado existia ou se a Rua Tambiá cruzava a Joaquim Nabuco e ia até o limite da Visconde de Pelotas, em cuja esquina e início finda-se a Rua Vigário Salem. No segundo caso, o número 17 poderia ser um dos casarões sem número da atual Praça D. Adauto. Caso contrário, ficaremos com um provável número 17, entre as já citadas Padaria Flor das Neves e a Farmácia Vitalis.

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Casarão sem número na Praça Dom Adauto.
Esta busca demonstra o quão difícil é estabelecer um local dos mais importantes para a nossa história cultural. A Prefeitura Municipal poderia ajudar, disponibilizando os registros – não sei se essa possibilidade existe – do traçado do centro da cidade, entre 1908 e 1910.

As cartas de Augusto à mãe revelam-se, assim, um importante documento para o início de um processo de preenchimento das lacunas na vida de nosso poeta maior, na nossa cidade.

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