Já conhecíamos boa parte do trabalho de Hélder Moura, desde os anos em que ele se fez diariamente presente nas residências dos paraiban...

O traiçoeiro abismo entre o mundo e o submundo

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Já conhecíamos boa parte do trabalho de Hélder Moura, desde os anos em que ele se fez diariamente presente nas residências dos paraibanos como repórter e jornalista dos mais atuantes, nos noticiários das TVs locais, sempre elegante e competente. Como colunista dos impressos, Hélder se destacou, por muito tempo, como cidadão sintonizado, bem informado e preocupado com a situação política do estado e do país, defendendo suas convicções com coragem e contundência.

Sua atividade literária, com títulos editados, traduzidos, lançados e premiados internacionalmente, dispensa-nos de comentar ou acrescentar algo, pois já se consagrou e continua a se enrobustecer na medida em que
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ele amadurece, aprofunda-se e se aperfeiçoa indiscutivelmente.

Entretanto, sua imersão na poesia não deixa de ser novidade para alguns, embora dê continuidade a uma tendência latente, já exercida em seu primeiro livro. Agora Hélder resolveu consolidá-la, no momento em que a maturidade lhe propiciou senti-la pronta, como acontece na “Discreta arqueologia da noite”.

Outrora, em tempos inspirados pelo que classifica como época de “sonhos e rebeldia”, aos 18 anos Hélder publicou “Coração de Cedro” (poemas), decerto fascinado pelos arroubos revolucionários rimbaudianos para transcender restrições, como ele próprio confessa. Daí em diante sua produção trilhou o caminho da ficção, dos ensaios e da análise sobre a obra de Guimarães Rosa, na qual se aprofundou e segue divulgando-a em países da América do Sul e Europa.

Eis que a veia poética ressurge como ponte entre a juventude disruptora de paradigmas e o sereno amadurecimento, numa conexão que ainda mantém vivas inquietações imunes ao tempo e à idade.

Esta outra boa parte do trabalho de Hélder — a poesia —, era-me desconhecida até receber os poemas e ser convidado a falar sobre a discreta “Arquelogia da Noite”, modestamente subtitulada de “quasipoēmas”, parodiando-os como “disformes”. Quem sabe, mais uma vez, Rimbaud provocou o autor aos desregramentos comuns às suas afinidades anárquicas, tão bem saboreadas em sua coleção de ensaios “Princípio da Diversidade e outros anarquismos”.

Entre os “taninos” degustados nas noites que se decantaram nesta arqueologia poética há, sem dúvida, notas agridoces. Contudo, equilibradas, especialmente marcantes e bem dosadas.

Ele mergulha no âmago tormentoso da insônia e encara, sem medo, o medo que o assombra. Como se esperança houvesse na busca frenética de se afundar em léguas,
até sentir “os lodos formados no tempo, o viscoso remorso do passado, tão pegajoso e tão macabro”.

Não esconde a inveja dos que “dormem de pálpebras cerradas” e não conhecem “a cruel travessia das madrugadas”. Assim deseja “morrer todas as noites, para não se aviltar em horas insones de pânico e agonia”, no afã de “ressuscitar pela manhã com a inocência de nada ter ocorrido [...ı de não ter percorrido o martírio, entre titãs, trevas e luz. Não ter recebido no ventre a verruma da dor de existir, nem palmilhado uma terra de horrores, onde habitam apenas os pesadelos”.

Mas a angústia existencial não é de agora, vem do tempo do “Coração de Cedro”, em que ele era “ingenuamente feliz”, quando “não via sentido na vida, e tampouco fora dela”. Vivia “confuso quanto ao espetáculo de viver”, mas não lhe pesava “a preocupação de entender”.

Na arqueologia das noites d'agora, Hélder já percebeu que “o lento passo da eternidade parece apenas dizer quão cretina é a busca da felicidade”. E ainda que a encontrasse, nada veria além do “enfado do caminho curto entre a nascente do caos e o despenhadeiro da vertigem final”. Aí se percebe que no eu angustiado de Hélder há um certo “eu de Augusto”, em que ele colhe sementes amargas nascidas não à sombra de um copioso tamarindo, mas de um “frondoso desespero”.

Em Volúpia do nada, confessa “estar morrendo como nunca esteve antes”, pois talvez tenha descoberto que a morte lhe chega com as noites: “todas as vezes que fecho os olhos, é a sombra dela que ali está”.

É verdade, como bem implícito no título, que a noite sem dó o persegue, inquire-o, instiga-o, e o faz interpelá-la como a uma esfinge: “O que afinal querem me dizer esses dois olhos sombrios com córneas de Saturno”?

O percurso lírico desta suíte composta de dramas vivenciados em penosa e indomável vigília agrava-se quando a ele se assomam lembranças ressentidas de alguma frustração afetiva eivada de mágoas e culpas, que o autor não hesita em revelar.

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Hélder Moura
Todavia, e muito além da carência e da angústia do existir, o olhar de Hélder alcança prazer na poética da escrita, “literatura que é vida, fado, acaso, sina, facho que ilumina até onde há escuridão. É paixão que procura um cais, encantamento singular, mágico ofício da palavra, que se esculpe com os cinzéis íntimos do ser”. E, portanto, pouco importa a quem escreve saber exatamente “o que é”.

No coroamento da arqueologia aqui bem estruturada em poemas, quiçá fique claro ao leitor que, mesmo após o desassossego das madrugadas, em cuja sombra e agonia a realidade desesperançosa fulgura cruel e lancinante aos olhos mais acordados do que nunca, Hélder conclui que a história de sua existência extrapola todos os “eus”, e quem sabe até tangencie o divinal, no instante em que se conscientiza da essência com a qual foi feito: “da fúria de uma argamassa cor de alvarás, de fósseis do início dos tempos em que havia só poeira, menos que apenas pó”.

E que lhe agrada saber e crer que ainda possui “a marca da fronteira entre a escuridão e a estrela. Que traz a memória do início e do fim; que faz parte do “traiçoeiro abismo entre o mundo e o submundo de uma reminiscência arquejante, quando animal e divindade eram um só.”

Posfácio do livro A discreta arqueologia da noite (quasipoēmas), de Hélder Moura

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  1. Pelo belo Posfácio, já senti vontade de ler a obra.

    Raniery Abrantes

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  2. Ângela Bezerra de Castro16/9/23 11:18

    Germano tem razão quando fala num certo eu de Augusto.
    "Grito, e se grito, é para que meu grito
    Seja a revelação desse infinito
    Que trago encarcerado dentro d’alma".
    Esses versos poderiam ser a epígrafe do livro de Hélder. Foi a sensação que me ficou, depois da leitura.

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  3. Milfa Araújo Valério16/9/23 22:04

    Germano querido, sua inteligência, verdadeiramente, é grande, mas sua sensibilidade tanto alcança os céus, como se derrama pelos becos e subterrâneos da poesia, traduzindo sentimentos em um passeio que nos emociona. Belíssimo posfácio, Parabéns!

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