Ao iniciar o mês de outubro de 1631, os holandeses que haviam chegado a Pernambuco em fevereiro do ano anterior continuavam confinados a uma estreita faixa litorânea entre Olinda e o Recife, assediados pelas guerrilhas das forças de resistência. Naquele momento, um relatório batavo registrou um acontecimento que viria a ter grande importância nos combates que os neerlandeses travariam nos anos seguintes na região:
“No dia 2 de outubro passou pelo acampamento do inimigo e veio ter com os nossos no Recife um indio, o qual declarou que fôra mandado pelo rei ou chefe dos Tapuias; e sendo interrogado por dois dos nossos indios, disse:
- que nascera na capitania do Rio Grande, mas se passara ás montanhas da Pepetania[1], onde estivera os ultimos 5 annos e de lá viera havia 5 mezes. Informou que a dita montanha dista um mez de viagem do Rio Grande [...] a gente que morava nas montanhas[...] e na Bahia da Traição, na maior parte Petivares (entre os quaes muitos eram amigos seus), se havia retirado dalli depois da partida do general Boudewijn Hendricksz[2].
Disse mais aquelle indio que o rei Jandovi (Janduí) e Oquenou o haviam mandado ver se os Tapotingas (nome que dão aos Hollandezes) estavam ainda em Pernambuco, pois queriam alliar-se a elles [...] Elle garantiu que os Tapuias, logo que recebessem noticias dos nossos, avançariam para atacar os Portuguezes e que, se os nossos quizessem tentar alguma cousa no Rio Grande, teriam prova da sua sinceridade”.
Disse mais aquelle indio que o rei Jandovi (Janduí) e Oquenou o haviam mandado ver se os Tapotingas (nome que dão aos Hollandezes) estavam ainda em Pernambuco, pois queriam alliar-se a elles [...] Elle garantiu que os Tapuias, logo que recebessem noticias dos nossos, avançariam para atacar os Portuguezes e que, se os nossos quizessem tentar alguma cousa no Rio Grande, teriam prova da sua sinceridade”.
Ainda conforme o mesmo relatório, o Conselho de Guerra holandês decidiu enviar embarcações ao Rio Grande com emissários para encontrar os Tapuia, nas quais foram “tambem enviados os indios que haviam sido levados da Bahia da Traição para a Hollanda, e que lá estiveram muito tempo, no intuito de attrahir os patricios do Rio Grande, Ceará e de outros logares a uma alliança com os nossos e excital-os contra os portuguezes”. Iniciava-se, naquela ocasião, a aliança dos holandeses com os Tapuia nos combates contra as forças de resistência luso-brasileiras.
O neerlandês Gaspar Barléu, em obra publicada em, 1647, em Amsterdã se refere à colaboração nas lutas dada aos holandeses, “mais de uma vez”, pelos Tapuia que “habitam o sertão brasileiro, bastante longe do litoral” e ressaltava que os mais conhecidos pelos batavos eram “os que moram nas vizinhanças do Rio Grande e do Ceará e no Maranhão, onde impera Janduí”. Barléu descreve no seu livro vários aspectos da vida dos Tapuia provavelmente com base em anotações que foram feitas por Jacob Rabbi, judeu alemão que se introduzira entre os indígenas e que adquirira a amizade do cacique Janduí:
“Tinha então Janduí quatorze mulheres, e tinham sido cinquenta, das quais lhe nasceram apenas sessenta filhos. Já que ele havia dobrado os cem anos. Isto conta dos escritos do alemão João Rabi, do condado de Waldeck, o qual, a pedido do rei Janduí e com permissão do Conde de Nassau, partira para as terras dos tapuias, a fim de servir de intérprete entre os holandeses e aquela nação. Viveu quatro anos com os costumes deles, agradável ao rei, espectador e testemunha bem aceita de tudo”.
Em junho de 1645, irrompeu em Pernambuco uma insurreição contra os holandeses que acabaria, após quase nove anos de guerra, no início de 1654, com a expulsão dos flamengos do Nordeste brasileiro. O francês Pierre Moreau, que prestava serviços à Companhia das Índias Ocidentais - WIC, relatou um episódio que ocorreu logo após o início da rebelião contra os batavos:
“Logo que os tapuias souberam, do fundo da mata em que habitavam, que os portugueses conflagravam o país, cerca de quinhentos, dos mais determinados, comandados pelo alemão Jacó Rabi, que lhes servia de capitão, dirigiram-se rapidamente para Cunhaú, uma boa aldeia da Capitania do Rio Grande, encontraram num domingo de manhã os habitantes reunidos para ouvir a missa, massacraram-nos todos, em número de sessenta a oitenta pessoas, comeram seus cadáveres e pilharam as casas das vizinhanças”.
Para Joan Nieuhof, que também era um servidor da WIC, o episódio do Cunhaú, “causou profunda comoção entre os portugueses das redondezas, especialmente da Paraíba”. Mas, os Tapuia não se limitaram apenas ao ataque ao Cunhaú, conforme descreveu um relatório batavo enviado aos Países Baixos:
“Do Cunhaú foram depois aos outros distritos do Rio Grande, continuando a matar os portugueses que podiam surpreender até que, com a ajuda dos brasilianos e alguns civis holandeses, tomaram certo reduto (no qual os portugueses se tinham retirado e fortalecido) e mataram todos [...] Isso foi feito, dizendo os brasilianos que eles tinham agido assim em vingança dos 30 ou 40 de sua nação que, contra o acordo, tiranicamente, foram estrangulados nas paliçadas, por André Vidal, em Serinhaém”.
No relato do beneditino Frei Raphael de Jesus, “tendo os governadores noticia do aperto em que estavão os moradores do Rio Grande (no mesmo tempo em que despedirão um socorro para a Paraiba) encomendárão aos cabos d’elle [...] que da Paraiba passassem ao Rio Grande, para eximirem os moradores da afflicção e risco em que estavão”.O comando da rebelião contra os holandeses havia designado um triunvirato para governar a Paraíba, que era formado por Jerônimo Cadena, Francisco Gomes Muniz e Lopo Curado Garro. Nas palavras do português Diogo Lopes Santiago, “que no tempo da aclamação da liberdade estava nesta capitania da Paraíba”, a Cidade de Nossa Senhora das Neves “ficou assistida de um dos três governadores, Lopo Curado Garro”. Segundo o religioso pernambucano D. Domingos do Loreto Couto, em obra publicada em 1757, Lopo Curado Garro era “natural da cidade da Parahyba”. Casado com D. Isabel Ferreira de Jesus, irmã de André Vidal de Negreiros, Curado Garro participou das confabulações que foram mantidas na Paraíba por André Vidal para a preparação da insurreição. Conforme registrado em documento oficial, Lopo Curado Garro participou, por quase dez anos, do triunvirato que governou a Paraíba durante toda a insurreição: foi “Governador da Capitania da Paraíba em todo o tempo, que se fez guerra ao inimigo Olandez pela liberdade Divina, e tambem na retirada”.
Lopo Curado Garro, em relato datado de 23 de outubro de 1645, escrito na Paraíba e encaminhado a Vidal de Negreiros e a João Fernandes Vieira, os principais líderes da insurreição contra os holandeses, narrou a chacina “que fizerão os tyrannos Flamengos, acompanhados dos barbaros Tapuias, e Pitiguares” na região de Uruaçu (Nota: no atual município de São Gonçalo do Amarante), no Rio Grande do Norte. Nas palavras de Curado Garro a sua narrativa “servirá de maior exemplo, e que escureça todas quantas tem sucedido no mundo em têpo dos Emperadores Romanos antigos; memoria que averá enquanto durar o dito; pois o sangue derramado de tantos innocentes, clama aos Ceos justiça, e aos Principes da terra favor, a tomar vingança de taes tyrannos; e para relatar os sucessos, e modos que ouve entre os ditos Flamêgos de suas deslealdades, e traições”.
A descrição detalhada, feita por Lopo Curado Garro, das atrocidades e crueldades que foram cometidas em Uruaçú pelos Tapuia e Potiguara, tinha o evidente objetivo de atemorizar os moradores das vizinhanças acerca do infausto acontecimento, principalmente aqueles da Paraíba, tentando sensibilizar os renitentes indecisos à aderirem à insurreição contra os holandeses, “porque taes tyrannos quer Deos que os conheça, para que a Christandade veja, que mais val passar por todos os tormentos da morte, que viver morrendo entre o nome de tal gente”. José Honório Rodrigues na sua História da história do Brasil considera que a obra de Curado Garro foi escrita “para provocar a luta contra os holandeses”, acrescentando: “Trata-se de narrativa parcial e tendenciosa do martírio de Uruaçu e da matança de Cunhaú, em que se infamou Jacob Rabbi, judeu alemão, intérprete e amigo dos tapuias, inimigos dos portugueses”.
Em 1648, três anos depois de escrito, o relato de Lopo Curado Garro foi apensado por Frei Manoel Calado no seu livro O Valeroso Lucideno e o Triunfo da Liberdade, publicado em Lisboa naquele ano com o título “BREVE, VERDADEIRA E AUTENTICA Relação das ultimas tyrannias, e crueldades, que os perfidos Olandeses usarão com os moradores do Rio grande, escrita pelo Capitão Lopo Curado aos dous Mestres de Campo, e Governadores da liberdade de Pernambuco, João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros”. Apesar de dedicada ao Príncipe D. Theodosio e ter obtido todas as licenças para a sua impressão, a obra de Frei Manoel Calado foi retirada de circulação ao que se sabe por gestões do vigário de Itamaracá que havia se sentido ultrajado por comentários feitos por Calado. Vinte anos depois, em 1668, outro editor faria uma nova publicação do livro. Quer se considere a edição de O Valeroso Lucideno de 1648, ou a de 1668, um fato, ao que parece, é inquestionável: o texto de Lopo Curado Garro foi o primeiro escrito publicado por um paraibano.
Fonte: Int. Archive
O reconhecimento de Lopo Curado Garro como um dos escritores portugueses foi dado por Diogo Barbosa Machado, o Abade de Sever, considerado o mais importante bibliógrafo português do século XVIII. No Tomo III da sua Bibliotheca Lusitana Historica Critica e Cronologica na qual se comprehende a noticia dos Authores Portuguezes e das Obras, que compuzerão desde o tempo da promulgação da Lei da Graça até o tempo presente, publicada em Lisboa em 1752, Diogo Barbosa Machado fez o seguinte registro sobre Curado Garro:
“LOPO CURADO GARRO Capitao no Estado de Pernambuco no tempo que estava dominado pelos Olandeses. Para mostrar que era igual a sua pena á sua espada, escreveu em 23 de outubro de 1645 aos Mestres de Campo Joao Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros famozos instrumentos da liberdade Portugueza em Pernambuco Breve verdadeira e authentica relação das ultimas tyranias, e crueldades, que os perfidos Olandeses uzarão com os moradores do Rio Grande. Sahio impressa no Valeroso Lucideno composto por Fr. Manoel Calado a pag. 277. Lisboa por Domingos Carneiro. 1668. fol.”.
Outro escritor do século XVIII, D. Domingos de Loreto Couto, em obra na qual trata das “Glórias de Pernambuco”, também se refere a Lopo Curado Garro. No livro Quinto da sua obra, “Pernambuco Illustrado com as Letras – Memorias de alguns naturaes desta Provincia que compuserão e imprimirão”, Loreto Couto faz o seguinte registro:
“Lopo Curado Garro, natural da cidade da Parayba, e hum dos tres governadores da acclamação da liberdade pernambucana naquella capitania, a natureza o ornou de talento perspicaz, e de intrepido valor com a espada, e com a penna triunfou dos inimigos da patria, alcançando pelas suas proezas fama perduravel, e nome eterno”.
Após deixar o governo da Paraíba em 1654, quando da expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro, Lopo Curado Garro continuou a exercer cargos relevantes na Capitania da Paraíba, como o de Escrivão da Fazenda Real e de Capitão do Forte de Cabedelo, no qual ele se encontrava quando faleceu na primeira metade de 1664. Lopo Curado Garro é o Patrono da Cadeira de número 8 do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano - IHGP, da qual o atual ocupante se esforça para não desmerecê-la.