“Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta, o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. “Fabricou Salomão um palácio...” E fui lendo, até o fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfônica”.
Essas palavras do poeta português Fernando Pessoa sobre a obra do padre Antônio Vieira escritas no Livro do Desassossego traduzem a genialidade como escritor do jesuíta a quem Pessoa deu o título de “Imperador da língua portuguesa”.
“O céu ‘strela o azul e tem grandeza,
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também”.
Em “Mensagem”, único livro publicado em vida por Fernando Pessoa
Para o conceituado historiador inglês Charles Boxer, Antônio Vieira foi “o homem mais notável do mundo luso-brasileiro do século 17”. Poucas pessoas naquele século tiveram uma existência tão multifacetada como a de Vieira nos seus quase 90 anos de vida (1608-1697). Conforme escreveu o historiador Luiz Felipe de Alencastro, “Vieira conviveu com políticos de Lisboa, diplomatas de Paris e Amsterdã, cardeais romanos, comerciantes de Rouen, feirantes de Cabo Verde, quitandeiras do Pelourinho, bugreiros e índios do Amazonas, cruzando o oceano cinco vezes. Nenhum europeu de sua importância teve, naquela época, tal experiência sobre a Europa e o ultramar”.
Apesar de ter nascido em Portugal, a vida do padre Antônio Vieira esteve entrelaçada com o Brasil. Vieira chegou a Salvador com seis anos de idade e somente retornou para Lisboa com 33 anos. Voltou ao Brasil em 1652, onde ficou até 1661, com o intervalo de uma curta viagem a Portugal, período em que exerceu atividades missionárias no Maranhão, Pará, Tocantins e no Amazonas. Por fim, retornou à Bahia para passar os dezesseis anos finais da sua vida.
Quando o padre Antônio Vieira chegou a Portugal, em 1641, já era um destacado sacerdote da Companhia de Jesus e orador sacro de renome. Nas palavras de João Lúcio de Azevedo, o seu principal biógrafo, “Captando desde o primeiro instante a simpatia de D. João IV, Antônio Vieira instalava-se ao mesmo passo na corte. Não como os fidalgos e criados que por obrigação do cargo habitavam com o rei, mas visitante assíduo, estimado pela conversação viva, atendido pela lúcida compreensão dos negócios do Estado”. Vieira encontrou o Reino diante de três dificuldades a serem superadas, conforme escreveu Evaldo Cabral de Mello:
Evaldo Cabral
“Quando em 1640 Portugal separou-se da Espanha, após sessenta anos de união dinástica, o novo monarca, o duque de Bragança, aclamado D. João IV, tinha três tarefas pela frente. A primeira, na Europa, o reconhecimento internacional do Reino e do trono; a segunda, na Península Ibérica, a defesa das fronteiras contra o inevitável ataque do vizinho; e a terceira, no ultramar, a reivindicação das colônias que, na América, na África e na Ásia, haviam sido perdidas para os Países Baixos no decorrer da prolongada guerra que haviam sustentado contra Castela, No Brasil, a Companhia das índias Ocidentais (W.I.C.) havia dominado o litoral do Nordeste entre o Ceará e o Rio São Francisco”.
O tratado de trégua que Portugal firmara em Haia, em junho de 1641, com os Países Baixos não contemplava a devolução dos territórios portugueses que haviam sido ocupados pelos holandeses durante o período em que o Reino lusitano ficou subordinado à monarquia espanhola. No caso do Nordeste brasileiro, a recusa dos batavos na devolução, pela via diplomática, da área que eles haviam ocupado decorria, segundo Ronaldo Vainfas, do fato de que “o 'negócio do Brasil' não era, para os holandeses, apenas uma questão de Estado, mas de uma empresa comercial dirigida por uma sociedade acionária – a WIC”.
Com poucos meses na Corte lisboeta, Antônio Vieira já se tornara influente, “pela sugestão pessoal própria dos oradores de lei, pela verbosidade que entontecia e quase lançava em hipnose o lento D. João IV. Labia chamava ele ao poder sugestivo dessa palavra que o rendia”, como escreveu João Lúcio de Azevedo. Para Charles Boxer as relações de Vieira com o rei “não eram de monarca e vassalo e sim de dois amigos que não tinham segredos entre si”. O padre Vieira logo passou a ser o pregador régio e, segundo Ronaldo Vainfas, “a partir de 1643, tornou-se o principal articulador político da monarquia portuguesa, homem de maior confiança de d. João IV, conselheiro para todos os assuntos, internos ou externos, políticos ou econômicos. Tornou-se quase um ministro sem pasta ou 'primeiro-ministro' informal, passando a desfrutar de imenso poder na Corte e a despertar, na contramão, ódios viscerais”.
Mesmo depois da assinatura do tratado de trégua entre Portugal e os Países Baixos continuaram em Haia as negociações diplomáticas que incluíam as discussões sobre a área do chamado Brasil holandês. Inicialmente, os portugueses apresentaram uma proposta de compra do Nordeste aos batavos por 2 milhões de cruzados, pagos à prestação, em dinheiro e açúcar. Segundo Evaldo Cabral de Mello na sua obra “O Negócio do Brasil”, a WIC rejeitou a transação, alegando que “todo Portugal não valia o que eles tinham no Nordeste”. No final de novembro de 1645, chegavam a Amsterdã as notícias do levante luso-brasileiro com a derrota dos flamengos nas Tabocas e da tomada pelos rebeldes da fortaleza do cabo de Santo Agostinho após a deserção do comandante batavo. Para Evaldo Cabral de Mello, “a insurreição liquidava as reduzidas possibilidades do projeto de compra, Portugal aferrava-se a ele como a uma tábua de salvação”.
Àquela altura dos acontecimentos, conforme escreveu João Lúcio de Azevedo, como o padre Vieira “dava o voto mais autorizado e decisivo” nos assuntos relacionados com o Brasil o monarca português, que considerava Vieira, segundo Boxer, “o primeiro homem do mundo”, decidiu, em 1646, envolvê-lo diretamente nas negociações diplomáticas. Para Vainfas, “Antônio Vieira foi o verdadeiro chanceler incumbido de negociar, em Paris e na Holanda, políticas que ele mesmo tinha convencido d. João IV a adotar”. Vasco Mariz destaca a radical mudança que acontecera na vida de Vieira, “em 1641 ele ainda dava lições de catecismo a jovens índios e negros em Salvador e, cinco anos depois, ele já negociava com um dos nomes mais poderosos do mundo, o primeiro-ministro da França, o cardeal Mazarin”.
Ao chegar aos Países Baixos, de religião calvinista, Vieira era obrigado a retirar a sua batina de jesuíta e, na narrativa de João Lúcio, vestia roupa “escarlate flamante; ao lado a espada, cheia a tonsura, bigode crescido, Deste modo andava em Holanda”. E, quando retornou para Lisboa, foi assim que se apresentou a D. João IV. Em Amsterdã, Vieira se convencera da necessidade de se destinar uma elevada quantia “para comprar as vontades e os juízos” de dirigentes da WIC e delegados na Assembleia dos Estados Gerais para tentar viabilizar a aquisição aos batavos das áreas de Portugal que foram por eles ocupadas, no que Evaldo Cabral de Mello chamou de “a compra da compra”. Os portugueses chegaram a apresentar uma nova proposta, elaborada pelo paraibano Feliciano Dourado que era o secretário da embaixada de Portugal em Haia, mas a negociação não interessou aos holandeses.
Portugal encontrava-se, naquele momento, em uma situação bastante difícil, tentando defender a sua independência em uma guerra contra a Espanha. A insurreição contra os holandeses no Brasil abria outra frente de conflito, desta vez com os Países Baixos. Para Charles Boxer, tanto Vieira como D. João IV “estavam convencidos de que Portugal não poderia de maneira alguma combater a Espanha e as Províncias Unidas ao mesmo tempo”. Para Evaldo Cabral de Mello, D. João IV decidiu “buscar a acomodação com os Países Baixos a qualquer preço, inclusive oferecendo a restituição do Nordeste”, o que correspondia devolver à WIC as áreas que haviam sido conquistadas pelos rebeldes em Pernambuco e na Paraíba, em troca da inclusão de Portugal em um acordo de paz que estava sendo discutido pelas principais nações europeias na cidade alemã de Munster, o que permitiria aos lusitanos a preservação da sua independência.
O padre Antônio Vieira escreveu, anos depois do ocorrido, que não fora ideia sua a “entrega de Pernambuco” aos batavos, “senão do senhor Rei D. João IV que está no Céu e do seu Conselho de Estado”. Embora a determinação do monarca esteja expressa em uma correspondência na qual ele afirma que Vieira viajara para Amsterdã com instruções para se fazer “conveniências à Holanda, restituindo-se-lhe Pernambuco sem nenhuma condição mais que da sua paz com este reino”, não é razoável se aceitar, pela influência que o jesuíta exercia sobre o rei, que ele não tenha tido participação na decisão de D. João IV. Para Ronaldo Vainfas, Vieira admitia qualquer negociação com os holandeses mesmo perdendo “as ricas capitanias açucareiras do Nordeste, do que arriscar a Coroa e a soberania portuguesa”.
A proposta de entrega aos holandeses dos territórios que haviam sido conquistados pelos rebeldes recebeu grande oposição daqueles que Vieira chamava ironicamente de “os valentões de Portugal” que para ele, “parecendo-lhes pouco para inimigo os castelhanos, queriam buscar outros mais em Holanda”, como escreveu João Lúcio de Azevedo. Vieira, então, para justificar a proposta elaborou, a pedido do rei, um documento com os argumentos que a fundamentavam. O documento tinha o título “Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses”, mas que ficou conhecido como “Papel Forte”, denominação que foi dada pelo próprio D. João IV em razão, segundo o soberano, da “força” da argumentação de Vieira.
Embora o título do “Papel Forte” se referisse à entrega aos holandeses apenas de Pernambuco, na realidade a cessão tratava das “capitanias de Pernambuco”, como era mencionado no texto. As “capitanias de Pernambuco” incluíam, além do próprio Pernambuco, o Rio Grande, Itamaracá e a Paraíba, conforme a descrição de Vieira no seu documento. Com relação à Paraíba, Vieira descreveu o que existia, na época, na Capitania:
“o Cabedelo e o porto da Rainha*,
e nele três fortalezas, a principal das quais que se chama Margarida, é como uma vila. A cidade está queimada, porque a desampararam os nossos, como toda a campanha daquela capitania, em que não temos coisa alguma”.
O “Papel Forte” do padre Vieira tinha como o seu principal objetivo a preservação de Portugal. Considerava na sua argumentação o fato de que, durante o período em que Portugal esteve subordinado à Espanha, as duas nações unidas não conseguiram expulsar os holandeses do Nordeste brasileiro. Como então, segundo Vieira, as frágeis forças portuguesas poderiam resistir guerreando em duas frentes, na luta pela manutenção da sua independência combatendo os espanhóis na Península Ibérica, e enfrentando os batavos no Brasil?
As vitórias que foram conseguidas pelos revoltosos luso-brasileiros e uma nova situação criada por um rearranjo das alianças entre nações europeias mudaram o ambiente sobre o qual Vieira se fundamentara ao escrever o seu “Papel Forte”. Em 1654, os holandeses acabariam capitulando no Recife. O padre Antônio Vieira, por conta do seu documento (do qual, anos depois, ele se defendeu afirmando haver escrito por determinação de D. João IV) ficou com a pecha de “Judas do Brasil”. Mas, um fato nunca ressaltado, é que os holandeses não deixaram o Nordeste brasileiro sem receber nenhuma compensação. Após arrastadas negociações diplomáticas, Portugal acabou concordando em pagar uma “indenização” aos flamengos que consistiu de privilégios sobre o comércio do sal de Setúbal, cessões de territórios na Índia e dinheiro. Para isso, conforme escreveu o historiador Pedro Puntoni, “estabeleceu-se um novo imposto que era pago no Brasil até o século XIX, apesar de a dívida já ter sido saldada há muito”. E Puntoni acrescentava:
“O que os luso-brasileiros haviam conquistado com muito esforço, a Coroa pagava ao derrotado, com o dinheiro sacado dos restauradores”.