Tentativa recorrente e vã de ultrapassar o signo linguístico, de romper com seus significados. A palavra como imersão no mundo, como instrumento de construção de um sujeito; o sujeito da linguagem. Clarice tem como ambição a constante vontade e necessidade de suscitar sensações. Ela sabe, com diz Barthes, trapacear na linguagem, explorando um corpo opaco e plurissignificativo, que é a literatura. Para tanto, está sempre a nos questionar, por meio de metáforas, metonímias, elementos epifânicos construídos a partir de situações banais, pessoas simples, donas de casa. Lê-la é uma grande interrogação: o contato com sua obra nos faz esquecer de quem somos ou nos autentica?
Independente da resposta, a constatação é uma só para quaisquer que sejam os caminhos: não há como ser indiferente, só há de sermos diferentes, transmutados, transformados e metamorfoseados – de baratas a objetos de salvação. Não há como não se inquietar com sua sintaxe inusitada, num mundo em que perdura muito mais a repercussão dos fatos do que propriamente estes.
Lacan (1996, p. 233) afirma que “é na cadeia do significante que o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação da qual ela é capaz”. Clarice parece ter essa consciência, por isso insiste nessa batalha e, de quando em vez, silencia-se, mas sabe que “escrever é compreender melhor”. Suas suspensões de falas se manifestam em elipses, reticências e páginas em branco.
A escrita de Clarice nasce dessa tentativa de preencher vazios e sua linguagem (re)vela isso com elementos como o “IT”, em Água Viva. Ademais, seus frequentes recursos metalinguísticos reforçam o quanto a autora tem a consciência da trama e do drama da língua(gem). Ao refletir sobre as palavras, ela clarividencia um mundo fascinante, como subterfúgio e refúgio diante do pragmatismo do mundo. Falar de Clarice é dizer o humano.
Isso fica bem evidente na obra Um sopro de vida em que o narrador-autor e a personagem Ângela Pralini se digladiam na ânsia de escrever sobre o escrever e toda a repercussão que esse trabalho provoca no eu-autor-leitor.
Clarice almeja a verdade íntima das coisas, nos desloca com sua narrativa introspectiva, desejando tocar no “coração selvagem da vida”, mas reconhece a sua limitação, eis o porquê de sua narrativa ser fragmentada e, por vezes, causar estranhamento. É muito pouco provável que nossos pensamentos sejam lineares, então por que a literatura haveria de sê-la? Nesse aspecto, Clarice figura como uma das escritoras mais coerentes, ao nos seduzir com fios soltos, aparentemente livres de uma preocupação lógica, mas eivados de plurissignificação.
Bem sabemos que, quando se escreve, lida-se com o inconsciente e, por isso, o estranhamento nasce, sobretudo no escritor que se pergunta de onde determinado pensamento surgiu, até chegando a afirmar ser algo maior que si mesmo, como assim o fez o poeta Fernando Pessoa.
A escrita clariceana, embora pareça fragmentada, é a de um sujeito em busca da fala, de dar voz a seus sentimentos, pois “a vida é impronunciável”. Segundo Plastino (2008), os textos de Clarice trazem imagens frequentes, dentre elas o ‘vazio’, a sensação de que “a torrente da vida estacou, a solidão, a ausência de si mesmo, que constatam a sensação de falta e perda, desde a Joana de Perto do coração selvagem até Macabéa, de A hora da estrela, passando por Virgínia, G.H, a narradora de Água Viva”. Citando algumas protagonistas de romances, sem mencionar outras inúmeras dos contos. Não resisto: Ana, de “Amor”.
Parece que, em seus últimos trabalhos: Água Viva, A hora da estrela e Um sopro de vida, Clarice, ou melhor, suas personagens e narradores mesclam o pessimismo no tocante à inacessibilidade do dizer, como se estes estivessem fatigados do “drama da linguagem” e suas (im)possibilidades, esperando a morte. Macabéa, por exemplo, aparenta fascinação com sua própria incomunicabilidade e, ao mesmo tempo, está grávida de futuro. Ela, uma datilógrafa mirrada, mas bem-intencionada, em busca de um amor ingênuo e idealizado.
Clarice escreve em Um sopro de vida: “Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? Esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos nos comunicamos com as mãos. E em A hora da estrela o pessimismo é ainda maior: “Estou absolutamente cansado de literatura; somente a mudez me faz companhia. Se escrevo, no entanto, é porque não tenho mais nada a fazer no mundo enquanto espero a morte. A busca da palavra na obscuridade.”
Não há fracasso em Clarice, talvez um embate, como nos sugere a psicanalista Maria Lúcia Homem (2012), ou, “Um drama da linguagem”, como diria Benedito Nunes (1989). Um texto dotado de poesia e, por isso, imerso na ultrapassagem do dizer; a arma de Clarice; sua pedra filosofal, sua política da linguagem é fazer com que por toda a sua obra as metáforas se anunciem para atravessar o silêncio. Ainda segundo Homem, o silêncio é um tema complexo, uma vez que se alia a várias designações. Destaco duas: a do “estar em silêncio”, em que as palavras se cercam de um vazio, tal qual o entremear das letras que constituem lacunas. E a do “silenciamento”, ação que consiste em um calar ou num subtrair de sentidos – o que não pode ser dito, portanto interdito e censurado – e aquilo que está pressuposto, por conseguinte se faz desnecessário explicitar. Nota-se que a autora de Felicidade Clandestina constrói sua literatura sob estas duas vertentes do silêncio.
Segundo Orlandi,
Todo dizer é uma relação fundamental com o não dizer. Essa dimensão nos leva a apreciar a errância dos sentidos (a sua migração), a vontade do “um” (da unidade, do sentido fixo), o lugar do nonsense, o equívoco, a incompletude (lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não apreensível), não como meros acidentes da linguagem, mas como o cerne mesmo de seu funcionamento. (1995, p.35)
Desde a sua primeira obra, Clarice foi precursora, na literatura brasileira, a desarticular os moldes e os esteios do romance tradicional canônico, causando grande surpresa aos críticos da época, a exemplo do Antonio Candido (1944), que confessa ter tido um “verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do Coração selvagem”, uma vez que a autora levou nossa língua a domínios pouco explorados, forçando-nos a adentrar em pensamentos tão largos de mistério.
Não é um sujeito de raiz racional, coeso que perdura na obra clariciana, mas sim um de caráter sinestésico em que os sentidos o dominam, sobrepondo seu consciente. O sujeito é traído pela palavra, que lhe escapa de sua rédea. A linguagem é fingidora, como sugere o poeta, não só porque engana o narrador, mas porque o finge, ou seja, o esculpe, o molda. Seu universo interior está em crise, e a linguagem é uma forma de manifestar o caos pelo qual os narradores e personagens de Clarice são acometidos.
Conforme Foucault (1992), acerca do processo de escrita “não se trata de pinçar um sujeito dentro de uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço em que o sujeito escritor não cessa de desaparecer”. Em Clarice, não raro, observa-se que a narração se apaga para que se prevaleça tensão dos sentimentos, das sensações e das reflexões, como diria a própria autora – sua literatura é mais pautada pela repercussão dos fatos do que propriamente a sucessão destes. Seria essa mais uma forma de o silêncio reaparecer em suas obras?
A partir deste trecho de “A hora da estrela” pode-se observar a polarização, o dilema do silêncio e da palavra, expresso metonimicamente.
E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais, estalactites, renda, música transfigurada de órgão. Mal ouso clamar palavras a essa rede vibrante e rica, mórbida e obscura tendo como contratom o baixo grosso da dor. [...] Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda.
A fotografia é o silêncio que Clarice deseja imprimir às suas obras, que são amplamente carregadas de imagens poéticas. Ao colocar em xeque o processo criacional, a metalinguagem insere-se como recurso para que o autor-narrador se apresente como o elemento de maior autoridade, cabendo ao leitor ser o expectador do exercício de conferir força ao porta-voz da mensagem: o eu-autor.
É isso que se observa nas obras derradeiras, Água Viva, A hora da estrela e Um sopro de vida. Clarice se debatendo na beira e no limite de representar a vida tanto quanto a vitalidade que há no ato de escrever.
Lê-la é como a experiência de estar diante de um divã, em que o ato da fala flui de modo livre, tal qual uma catarse, numa oportunidade de se refletir e pensar a vida. Por isso que, para muitos, ela é considerada uma escritora hermética, pois é preciso estar aberto, de “alma formada”, disposto para ouvi-la e, assim, amá-la. Desse modo, quem seria o autor do texto? O analisante ou o analisado – Clarice ou nós?
Tanto a literatura, principalmente a de caráter intimista/introspectivo quanto a psicanálise exploram o não dito. E é justamente o enigma das entrelinhas claricianas, a junção entre aquilo que se revela e se oculta para nós que nos fascina em suas obras. Quanto maior o estranhamento, a antítese e o paradoxo do ser-estar do corpo literário, maior a nossa vontade de penetrar na densidade da poesia, pois, como diria Lacan “o amor sobrevive de desejo”, aquilo que está oculto e não o que está revelado é que nos faz prosseguir na história, é o mistério que nos envolve, nos enlaça e nos excita.
Mas, como diz Perrone-Moisés (1990, p. 177):
Enquanto escritora, Clarice não acreditava nem um pouco na capacidade da linguagem para dizer “a coisa”, para exprimir o ser, para coincidir com o real. O que ela queria – ou melhor, “devia”, já que escrever era, para ela, missão e condenação – era “pescar as entrelinhas”. O que ela buscava não era da ordem da representação ou da expressão. Ela operava emergências de real na linguagem, urgências de ver. Resta ao leitor receber suas mensagens em branco, e ouvir o que de essencial se diz em seus silêncios.
Apesar disso, é preciso recordar que, embora eivado de abstração, o texto se constitui em sua materialidade, é preciso reafirmá-lo. Há limites para o nonsense? Mas, toda escrita é arbitrária, simbólica, como bem pregam os estudos linguísticos. Este trecho de Água Viva demonstra que é vã a tentativa de alcançar uma linguagem concreta:
Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. Só tive inicialmente uma visão lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente morre. [...] Há uma linha de aço atravessando isto tudo que te escrevo.
O diluir-se da linguagem, o instante que morre na narrativa é justamente o estranhamento que, quando repetido sucessivas vezes, há de se perder o encanto. Por ora, aquilo que foi escrito na trama clariciana é sustentado pelo jogo da linguagem que coloca o narrador como aquele que promove os impasses do texto literário, aquele que perfaz o universo das personagens e as encaminha para um espaço em que dilemas e crises existenciais, aparentemente simples, deem margem para criaturas complexas. De Joana, do primeiro romance, passando por Lóri, de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e da mulher de A paixão segundo G.H, notar-se-á o avanço do cotidiano para o extraordinário – do factual para o psicológico.
A escrita como salvação
“Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida”. Essa frase do livro Um sopro de vida revela o quão a escrita é um instrumento vivificante para a autora, escrever é como um resgate. A escritura de obras literárias como manutenção do sujeito frente ao mundo, uma reafirmação, um condensamento de uma voz que precisa vir à tona, sob o risco de morrer. A escrita é urgente, pois a vida se mantém frente à palavra que precisa se materializar.
Podemos concluir que o adensamento dos fatores-caos, a incomunicabilidade, o silêncio e a escrita representam a obra de Clarice como um todo, sobretudo em suas três últimas obras. A relação dialética entre a falta e o silêncio aponta para a angústia de um ser que se constitui de linguagem. Como diria Sartre: “a angústia nasce das possibilidades”. Como Clarice é multifacetada em seus recursos linguísticos, por vezes o silêncio intercepta o texto, fazendo-nos inferir que houve um fracasso na linguagem.
Porém, seu desamparo existencial, causa de uma subjetividade esfacelada, não impede que o leitor se guie pelos seus recursos linguísticos, tomando consciência de que há uma alteridade em evidência. E, contornando o ser, atravessa-o, porque o signo linguístico é extrapolado.
Alguém disse que o poeta está sempre a escrever o mesmo poema. Isso pode ser adotado para Clarice, que sempre esteve inquieta em busca da palavra, da frase, do sentimento exato. Seu “instante-já” era o momento em que estava escrevendo. Por isso, em sua última entrevista, concedida à TV Cultura, afirma que quando não escreve está morta.
E, nesse movimento de vida e morte, palavra e silêncio, Clarice se mantém e nos mantém vivos, e temos mais que celebrá-la. Na ausência, nesse jogo de espelhos, cujos reflexos nem sempre são agradáveis de se ver, a escritora se faz presente em nós.
*Texto originalmente apresentado no I Conel (Congresso nacional de estudos lispectorianos) em novembro de 2017. Adaptado com exclusividade para o Correio das Artes.