Era uma escolinha de subúrbio. Sem os embelezamentos da arquitetura moderna, adotando a temível palmatória. O professor vinha no seu ...

Mestre Tibúrcio

grupo escolar professor
Era uma escolinha de subúrbio. Sem os embelezamentos da arquitetura moderna, adotando a temível palmatória. O professor vinha no seu Ford 29, parava o carro, com orgulho, puxava uma bolsa de couro maltratada do assento e cortava, num jato, os dois únicos compartimentos do pequenino educandário. A escola do mestre Tibúrcio respeitado por toda a cidadezinha, aconchegava, se muito, cerca de vinte alunos. Todos bem selecionados, num verdadeiro vestibular do ensino primário, em que o próprio professor comandava as aulas.

Em seu costumeiro posto de honradez, começava a chamada, proclamando alto o nome completo de cada discípulo. Nisto fazia questão para valorizar os alunos que tanto amava: os pequerruchos beliscando a tabuada e a cartilha. O mestre nunca se envergonhara de sua raça. Por respeito, ninguém se atrevia a fazer qualquer comentário, sabendo-se de sua conduta e acúmulo de conhecimentos didáticos e pedagógicos.

Enquanto ensinava, seus olhos duros e túrgidos de sangue, sofrendo crônica irritação, permaneciam paralisados na jabuticabeira plantada no oitão da escola e que jogava uma sombra inquieta, puxando uma ventilação natural e mansa a entrar pelas janelas existentes em cada sala. Mestre Tibúrcio tinha a boca esparramada nuns lábios roxos, a língua sobrada, a voz rouca, batendo as sílabas nos dentes alvos, de marfim.

Embora fizesse calor, o querido professor não deixava de usar o paletó, nem a gravata escorrida sobre a camisa de linho.

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A autoridade sem afetações estava no porte do Mestre Tibúrcio. Homem digno, vindo da pobreza, porém afeito, desde criança, aos livros, estudioso, autodidata. Era um malabarista com letras e números, em passes de mágico, numa destreza verdadeiramente circense. Lidava com o alfabeto como quem sacudisse dados para o alto e os aparasse no nariz.

Uma tarde, Professor Tibúrcio chegou diferente. Os alunos notaram pelo seu jeito meio desconcertado de explanar. Tudo foi feito sem a alma de antes: a chamada, a aula, a ausência do sorriso. Terminada a resolução
do problema de aritmética resolvido em riscos mal traçados, pensos, sem prumo, Mestre Tibúrcio, de forma estranha, mais do que de costume o fazia, esqueceu os olhos duros pousados nas folhas da jabuticabeira. Tinha algo a dizer, mas parecia fugir-lhe a coragem de contar a verdade àquela meninada com quem convivia, se deleitava, de quem recebia homenagens, doces, cocadas, chocolates, presentes, no Dia do Professor.

Levantou-se de um só impulso, percorreu as veredas entre as carteiras, pigarreou forte, encheu os pulmões, pigarreou fundo, foi à frente, se recostou ao birô e revelou a mais cruel sentença, o maior zero, a maior reprovação para ele e os discípulos ansiosos:

⏤ Meus queridos, acaba tudo hoje. Não sei como revelar a vocês. Vejam meus olhos como estão bem mais vermelhos que no começo do ano. Por aqui passou um oculista. Fui a ele na esperança de curar-me. Deu-se o contrário. Recomendou-me deixar de ensinar para não ficar totalmente cego. O giz está me prejudicando. Esforço-me para ler e escrever... portanto, aguardem a correção das provas finais. A escola será fechada.

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