É só no que se fala nestes últimos tempos. Harmonização facial pra cá, harmonização facial pra lá, e por aí vai esse recente modismo estético-médico-social, no qual, como nas salsichas, misturam-se muitas coisas e motivações, algumas não muito salutares, esta é a verdade. É apenas um modismo temporário, como a quase totalidade das modas, ou é uma tendência de comportamento da sociedade, com possibilidade de alguma permanência? Sinceramente, não sei, até porque não sou sociólogo nem antropólogo nem nada, mas o tempo dirá, como sempre faz. Aliás, é exatamente o tempo o fator que diferencia moda do que não o é: se passa rápido, é modismo; se fica, não é.
Difícil hoje em dia, por exemplo, você encontrar um dermatologista tradicional que cuide dos velhos problemas de pele, conhecidos da humanidade desde os primórdios: as coceiras, as manchas sem causa aparente, a caspa etc. Se você tem algum desses males banais, vai no consultório alinhado do doutor fulano ou da doutora cicrana e se surpreende: lá não tratam dessas enfermidades populares e sem glamour, mas apenas de questões estéticas, ligadas ao embelezamento e ao rejuvenescimento, de tal modo que o jeito é o paciente procurar o SUS para curar a sua pobre sarna ou um profissional da velha guarda ainda não contaminado por essas novas especialidades estilosas – e caras.
Na cirurgia plástica, observa-se esse fenômeno há mais tempo, pois nessa área o viés estético sempre prevaleceu sobre o puro e simples viés reparador. O nosso talentoso Ivo Pitanguy não virou celebridade internacional pelas extraordinárias cirurgias em queimados que realizava gratuitamente na Santa Casa do Rio de Janeiro, mas pelas famosas artistas e endinheiradas “socialites” que repaginou, a peso de ouro, como se diz, em sua clínica particular. Por tanto sucesso nas duas frentes, formou escola, para o bem e para o mal.
Na odontologia, a coisa envereda pelo mesmo caminho. Esse negócio de cárie, gengivite e outros triviais males dentários não mais interessam aos profissionais das recentes gerações. O interesse quase que absoluto deles e delas é exatamente no campo da chamada harmonização facial, seja lá o que isso for. E aí surge o inevitável conflito com os dermatologistas e os cirurgiões plásticos, pois cada qual quer estabelecer e manter sua reserva de mercado, seu nicho profissional exclusivo, sem admitir a entrada de eventuais “penetras oportunistas” ( a expressão é deles, não minha, esclareço). Quem já viu uma guerra dessas?
Naturalmente que na raiz desse amplo fenômeno social está o dinheiro, claro, mais propriamente sua abundância e não sua carência. Pois as pessoas (os profissionais de todo tipo incluídos) costumam seguir o dinheiro, vão para onde ele aparece e se multiplica e não para onde ele falta ou rareia. Os marxistas ortodoxos até hoje não entenderam isso e por esta razão é que sempre se dão mal, aqui e alhures. Portanto, não é o caso de se fazer precipitados juízos de valor sobre os que trabalham nessa nova e rendosa especialidade, salvo nas hipóteses - que existem - de descarada falta de ética e de explícito mercantilismo.
Interessante é que com frequência os resultados desses “procedimentos” não são muito, digamos, exitosos. Não poucas clientes entram feias no consultório ou na clínica e de lá saem mais feias ainda. Os exemplos são muitos e estão aí, à vista de todos, o que deve ser um suplício para as vítimas. Aqui e acolá é que se vê um razoável sucesso, alguém que sai da experiência com a face mais “harmonizada” do que antes. O que tem de rostos “cubistas” em circulação, por conta de insucessos nesse ramo, faria a glória de Picasso, pode crer. Recentemente, a propósito, assisti a um filme estrelado por Jane Fonda, nonagenária que até está bem, relativamente falando, mas seus indisfarçáveis olhos redondos e esbugalhados não enganavam ninguém: ali tinha, certamente e em demasia, essa tal de harmonização facial – ou coisa pior.
Abro um parêntese para contar uma historinha pitoresca: o então jovem Picasso pintou em Paris um retrato de sua amiga Gertrude Stein no estilo cubista, mas sem preveni-la. Ao receber o presente, a escritora, surpresa, reclamou: “Mas Pablito, meu rosto não é assim, todo deformado”. O pintor respondeu: “Não se preocupe, Gertrude, com o tempo ele vai ficar assim”. Terá sido o genial espanhol um precursor da (ou da falta de) harmonização facial?
Confesso, leitor, não ter uma opinião formada sobre assunto tão atual e palpitante. Creio que cada caso é um caso e que homens e mulheres devem se cuidar o melhor que podem, de modo a ter, dentro do possível, uma vida saudável, longeva e bonita. Tudo é uma questão de personalidade, de bom senso e de recursos. Há pessoas que aceitam sem nenhum problema a passagem do tempo e suas inevitáveis consequências corporais, como as rugas, a flacidez da carne, a gordura e os cabelos brancos. Já outras exageram no extremo oposto: querem ser jovens - ou imitá-los – quando não é mais possível ou razoável fazê-lo sem constrangimentos gerais.
Enfim, quem gostar e quem puder pagar, que faça, mas com moderação e com profissionais comprovadamente competentes e éticos. Nada de se transformar em monstros irreconhecíveis e desarmônicos. Nesse modelito exótico, basta Frankenstein.