Aí,
os envolvidos na construção do Marco vêm, fascinados,
de todos os lados,
ver a Paixão,
que chega ao vivo,
em prosa,
sem trilha de Johann Sebastian nem Miklós Rózsa,
pra ser – sem muitos porquês - o andar mil e três.
—
E eis encarregados de cordas,
enxós e enxadas,
martelos,
serrotes, marretas,
cutelos,
com cravos e cunhas,
legais testemunhas,
e Longino:
lança na mão,
a cavalo, no embalo,
a frase em hebraico, latim e grego na bolsa, junto ao pelego,
que vem para marcá-lo.
—
Vêm,
também, os curiosos, ociosos,
correndo,
bandos de mendigos, ambulantes,
músicos, adivinhos, feirantes,
malabaristas, artistas,
a multidão festiva, emotiva, grande o bastante pra que um gazo – sacana - trombe num crente, que o comparsa – que vem rente - afana,
no que há um grito
— Ah, não!
- Pega ladrão!
a que se segue o corre-corre,
— Ordinário!,
tudo sob a iluminação cambiante do dia extraordinário.
—
Aí as Marias - Salomé, de Cleophas e de Magdala - protegem a Virgem do escândalo da plebe vândala,
—
e vem o estandarte vermelho, águia dourada a brilhar como espelho,
— A legião!, diz João, mostrando a guarda que reprime a corja, com garra,
seguida pela fanfarra.
—
Trompas,
tambores,
cornu, tuba, bucina,
o som azucrina.
—
É de ânsia o clima, a multidão se aproxima,
e o que se vê – Calvário acima - é tráfego trôpego de braços de cruzes,
o atropelo de estalos,
flagelos,
luzes,
abalos,
o aramaico arcaico
latim e grego, hebraico,
Taceas! ,
Machiach!
Asine!
—
Aí,
o Cristo mira al cielo
con serenidad
apesar de sofrer de verdad,
e lhe tiram a túnica vermelha,
inconsútil,
a partir de agora,
inútil.
—
Finalmente,
deprimentemente,
sem qualquer acordo,
ergue-se o patíbulo do punguista gordo, que, febril, diz alguma coisa à toa,
viril,
enquanto o meliante magro, quando erguido, ao contrário do ogro, dá um grito, interrompido pela esponja, que lhe entope a boca e o atordoa.
E,
no meio desses horrores,
ergue-se a cruz de Cristo,
e ele diz
isto,
na língua dos invasores:
— Foderunt... - o resto da fala coberto pelos berros e ruídos de guinchos,
relinchos,
marteladas,
risos,
choro,
um trovão,
zoada bizarra,
música louca, estilhaços de jarra,
algazarra.
—
Aí,
a mãe não aguenta o sufoco,
a cena recua,
sente-se um... oco.
(Do livro MARCO DO MUNDO, ed. Ideia, 2012, disponível na Amazon )