A poeira acumula-se por todos os lados. Do álbum de fotografia aos cantos dos olhos, da vastidão da rua atravessa o vazio para o interior da casa, está suspensa no ar quase que imóvel, girando em órbita aleatória sob o feixe de luz que adentrada na tarde pela fresta da janela entreaberta. Há pó na superfície dos planos, dos sonhos e de antigos sorrisos que, vez por outra, com um sopro, afastam a fina camada para reviver cenários e pessoas.
Fora da dimensão terrestre, há poeira cósmica, assim como nas mentes, cada uma um mundo de mutações, dimensões e representações. E com o tempo, universalmente ocorre o acúmulo das partículas poeirentas, ajuntamento de fragmentos já dispersos na memória. Por vezes, nem a chuva que reaparece incessante lá fora remove a poeira da saudade, o pó da estrada da vida. No máximo, as gotas dão brilho ao passado.
O tempo, um ser incontrolável, também é poeira em medidas díspares. Ora surge veloz, atropela tudo, nuvem de pó que encobre e arrasta a todos feito um dragão feroz quando se deseja o contrário; ora aparenta mansidão, é lerdo, recusa os pedidos para ter pressa. Na infância, o tempo é imenso quando se tem fome de crescer e experimentar. Depois, gira sem freio em que somos passageiros e o observamos escapulir pelas mãos. Dificilmente o tempo agrada.
Nas andanças, a poeira é companhia. E até a noite surge como o pó encobre o dia, as nuvens são o mesmo para tapar o Sol. A vista turva os significados, a memória trai o ser ao ter escondidas informações antes disponíveis, pois o tempo empoeira a lucidez e é capaz até de criar fantasmas e colocar pó nos olhos.
Se há poeira, também existe parada no tempo, que ainda assim avança. A poeira sai da invisibilidade para marcar a passagem do tempo, para alertar a todos que tudo passa. Ela aponta, grão a grão, quase que imperceptivelmente, que o universo, apesar da aparência estática, é um ser móvel. E o pó é elemento sinalizador e também matéria-prima microscópica para remontar histórias, recontar vidas, refazer caminhos em direção de volta à essência, poeira cósmica.
E poeticamente tudo vira pó. A rua, as fotos, os dias, as paisagens, as correntes que prendem destinos. Mesmo que vagarosamente a poeira invada os recantos dos mundos humanos. E se faz presente pela ação do poderoso tempo e o descuido natural ao se avançar pela estrada da vida.
Assim, a decomposição em pó desfaz o construído, atrai micro partes de outros cantos e coisas, cria um véu sobre tudo, põe a assinatura do tempo ido.
E, no final, rumamos para voltar a ser poeira, ou cinzas, um outro tipo de pó, reencontro.