Janeiro de 1997. Ocupava eu uma das salas alugadas na Avenida Dom Pedro II, em João Pessoa, pelo “Jornal do Commercio”, do Recife, quando a secretária avisou: “Está aqui o prefeito de Monteiro à sua procura”. Levantei-me para receber o velho amigo Carlos Batinga e, antes de qualquer cumprimento, ouvi dele: “Eu não falei que te levaria à nascente do Rio Paraíba? Pois estou aqui para combinarmos a viagem”.
Isso seria feito no dia seguinte, um sábado. Batinga, para minha surpresa, cumpria o que a mim prometera não há pouco tempo, mas uns trinta anos antes quando cursávamos, no Liceu Paraibano, o Científico para Engenharia.
“No dia em que eu for prefeito da minha cidade te levo para conhecer aquela nascente”, prometia o jovem Batinga, naqueles idos, a este seu então companheiro de Liceu, um ex-ribeirinho invejoso do colega a quem a sorte dispusera o começo da segunda maior bacia hidrográfica da Paraíba. Prometeu e cumpriu, de modo bem espantoso, dado o transcurso de três décadas desde a promessa até a viagem. Acompanhou-nos o amigo em comum Alarico Correia Neto.
Para quem viu este rio em algumas de suas grandes cheias, a nascente, no sopé da Serra do Jabitacá, divisa de Monteiro com a pernambucana Sertânia, é algo que emociona, embora nenhum filete d’água jorre dali em momentos de seca. O Paraíba é um rio dependente das chuvas. Assim, naquele janeiro, não passava de um banco de areia aquilo que nos apontava um dono de sítio, com a informação: “É aqui”.
Dei-me por satisfeito, todavia, com a chance de matar a curiosidade surgida da contemplação corriqueira de águas revoltas e barrentas a cada passagem das enchentes por Pilar advindas do Poente. Algumas vezes, a cabeça de cheia aparecia na madrugada, ocasião na qual as famílias eram acordadas pelo soar de búzios.
Enquanto o povo da rua trocava o pijama pela roupa comum em busca do espetáculo, os ribeirinhos desamarravam os animais e tratavam de colher o que pudessem da horta plantada no leito arenoso antes que se completasse a inundação. Uns envolviam-se nesses cuidados e outros tocavam os búzios para o aviso dos residentes em pontos mais abaixo por onde as águas logo passariam.
Quem nunca ouviu um búzio soprado com maestria terá uma boa noção da coisa se pensar no apito triste e grave de navios em suas despedidas dos portos. Nos meus tempos de menino, o volume final das enchentes era estimado com base no espaço de tempo em que pedaços de paus fincados numa das margens pelos adultos fossem encobertos pelo rio que se alargava. Eles afastavam, então, esses marcos para pontos mais distantes da linha d’água e observavam o ritmo dos próximos encobrimentos.
“Vai ser um cheião”, profetizava Seu Guel, amigo do meu pai, com invariável acerto. Outros sinais infalíveis para as previsões de um rio de canto a canto eram as passagens de animais mortos, ou de madeira trabalhada. Neste último caso, o Paraíba já teria derrubado casa, de Itabaiana para cima.
Em 1985, morando em João Pessoa, já casado e dirigindo a Redação de “O Norte”, na época o maior e mais influente jornal da Paraíba, fui acordado pelo tilintar do telefone, às 5 da manhã. Do outro lado da linha estava um amigo pilarense, o Luís dos Correios, com o pedido: “O Paraíba fugiu do leito e já invade a minha calçada. A cidade está ilhada e estamos todos com medo. Veja se com o prestígio do seu jornal você consegue alertar o governador".
Liguei para a Granja Santana e fui atendido por dona Lúcia, a Primeira Dama. Contou-me ela que Wilson Braga, o marido, naquele exato momento, sobrevoava Cruz do Espírito Santo, onde a situação era muito mais grave. Ali, o Paraíba já havia levado metade da cidade.
Tudo isso me vem à mente em razão da travessia do velho Paraíba feita, há pouco, pela ponte de Pilar com destino a Juripiranga, onde tive meus avós e hoje tenho alguns primos. Ponte mais nova porquanto a primeira fora arrancada das fundações pela enchente de 1985, aquela que fez Luiz me acordar às 5 horas.
Tal roteiro também me costuma trazer a lembrança de “Doidinho”, personagem-título do segundo livro de José Lins do Rego e apelido por ele recebido quando entregue, ainda menino, à palmatória do Professor Maciel, em Itabaiana, ao cabo do percurso de 12 quilômetros coberto desde Pilar pelo trem da Great Western.
Distante de casa e saudoso da vida leve e solta na bagaceira, o pirralho exagerava na largura do rio em sua passagem pelo engenho do avô. Mais do que isso, gabava-se de poder atravessá-lo, a nado, nas melhores de suas cheias.
Não deu outra: foi desafiado pelos colegas a tentar isso no sábado de banho, um dos poucos momentos de lazer permitido aos alunos pelo velho Maciel. O amigo Coruja o salvou do vexame ao levar ao dono do internato, no dia anterior, a história desse desafio.
Manhã cedo, Doidinho, com as mãos inchadas, mas aliviadíssimo, via a turma seguir sem ele para o tal banho. A prisão momentânea o livrava da zombaria dos colegas, pois o diabo é quem enfrentaria aquelas águas. Não ele, com suas bravatas e suas mentiras. Ele, mesmo, não. Ali, em comparação com o trecho do Engenho Corredor, o Paraíba fazia-se quase duas vezes mais largo. Coruja, sem querer, o afastou da desonra.