Meu caro amigo e poeta Hildeberto, antes de tudo, gostaria de agradecer o fato de que uma referência de nosso amigo e confrade comum, ...

Carta a Hildeberto Barbosa Filho

augusto anjos paraiba
Meu caro amigo e poeta Hildeberto, antes de tudo, gostaria de agradecer o fato de que uma referência de nosso amigo e confrade comum, Tarcísio Pereira, sobre o meu texto que aborda a relação entre Augusto dos Anjos, nosso poeta maior, sem desdouro para ninguém, e a Rua Direita, atual Duque de Caxias, onde ele morou, provocou no poeta, mais do que no amigo, um lampejo, aquela fagulha criadora, cujo resultado foi poema intitulado “A Casa de Augusto dos Anjos”, num autêntico desdobramento do fiat lux em um et lux facta est.

Primeiramente, meu amigo, esclareço que o texto referido por Tarcísio Pereira, desencadeador do seu poema, apesar de não ter sido lido por você, ainda que tenha contrariado a “luz que não chegou a ser lampejo”, foi publicado no Ambiente de Leitura Carlos Romero, blog em que publico, sempre aos sábados, meus escritos.
augusto anjos paraiba
Já o texto que o dileto confrade leu, publicado no último Correio das Artes (nº 06, agosto de 2023), embora trate de tema semelhante, é outro texto, mais elaborado e produzido para ser a introdução do meu próximo livro Ei-lo pulando de uma casa para outra, nas ruas da Capital: um roteiro de Augusto dos Anjos, nas ruas de João Pessoa, então Paraíba, com projeção de publicação em outubro deste ano.

O objetivo do texto referido pelo dramaturgo e romancista Tarcísio Pereira, meu amigo, foi lançar de imediato a chama da discussão de um assunto candente, sempre que envolve o poeta Augusto dos Anjos; assunto, desta feita, associado menos à sua desafiadora intrigante e instigante poesia do que a nossa combalida memória, corriqueira e banalmente desprezada e, de forma desapiedada, jogada no lixo. Parece-me ter razão o poeta do Eu, quando, já no Rio de Janeiro, em carta à mãe, datada de 16 de julho de 1911, refere-se à nossa terra como “Paraíba madrasta, enxotadora monstruosa de seus filhos” (Ademar Vidal, O outro eu de Augusto dos Anjos, p. 192), o que o fazia sentir-se, no seu desolamento, à procura de um emprego que lhe desse estabilidade e sustento à família, “um bacharel depenado, antigo professor de província, e possuidor de outros títulos congêneres de desmoralização” (idem, Carta do dia 25 de janeiro de 1991, p. 188).

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Além de alijarmos o poeta do seu sustento – assunto que rende muita polêmica, certamente –, nós adensaremos a sua desmoralização, fazendo-o descer ainda mais, com o total desprezo aos seus passos, por ocasião de sua permanência entre nós, na capital, no período de dois anos (1908-1910), negligenciando uma memória cultural que julgo não só importante, porém a mais importante de nossa Paraíba? Há tantas ruas, tantos logradouros, tantos espaços públicos, em homenagens a pessoas que nada fizeram pela Paraíba, sequer chegaram a visitá-la ou cuja (des)importância, poeta Hildeberto, foi a de ser político, naqueles moldes comuns da má política viciosa e danosa ao bem público. Em contrapartida, concedem a um dos mais brilhantes poetas do Brasil, uma ruela escondida numa transversal da Rua D. Pedro I, longe do caminho que sofreu a pressão fleumática de suas passadas,
o bastante para eternizá-lo, como os passos de Paul Cézanne eternizam a sua Aix-en-Provence, sempre agradecida ao pintor da Sainte-Victoire.

Agora mesmo, poeta, está em pauta uma revitalização da Rua Duque de Caxias, a partir de um projeto cultural para atrair turistas. Não há uma menção sequer ao poeta Augusto dos Anjos e de sua relação profunda com a rua. Além de o projeto resumir a cultura à música e a referências às igrejas da região, não me parece que seja estrutural, com mudanças que venham não só atrair pessoas para a antiga Rua Direita, mas de fixá-las no centro da cidade. Por outro lado, Hildeberto, também me cheira a algo eleitoreiro. Estamos no fim do ano de 2023, para o ano é época de eleição para a Prefeitura Municipal, e, como sabemos, toda a energia vai ser consumida na politicagem. Confesso, meu amigo, não ter a menor expectativa com esse projeto.

Veja, poeta, evocando agora o seu lado de crítico literário, como é interessante e misterioso o ato criador. Você ouviu falar do meu texto, criou um poema, cujo cerne é o do poeta deslocado, por ser da poesia o deslocamento e o desconforto, num flagrante confronto com a minha disposição de estabelecer para o poeta Augusto um local que sempre lhe faltou, por motivos vários. Isto, talvez, se deu pelo fato de que eu, menino, andei muito pelo centro da cidade, principalmente,
no miolo controlado pela Visconde de Pelotas, Duque de Caxias e General Osório, e suas transversais mais próximas, e tenha guardado comigo, quando ainda nem conhecia Augusto dos Anjos, um carinho pela minha João Pessoa, ainda não enxovalhada, como se encontra hoje. Talvez, porque conheci a vida do poeta, sempre em busca de uma estabilidade, que lhe parecia fugir, como sombra quando nos voltamos contra ela. O fato é que me sensibilizou, meu caro amigo, ainda tratarmos com desdém quem nos eleva culturalmente, enquanto, mais por cômoda conveniência, empregarmos nossa energia em louvar outros que de nós só mereceriam umas tantas vergastadas com um bom relho ou um bom galho de goiabeira. Quão díspares, nas suas formulações, os propósitos da criação, em franco confronto, mas sem se anularem!

Talvez a diferença de propósitos não resida apenas na contradição flagrante entre a poesia e a realidade. Tangenciando-as, porém, diria que a diferença se encontra no fato de que você é poeta, meu amigo, eu não sou. O poeta, rompendo com o que o limita, situa a existência poética no orbe; o homem cartesiano como eu, gosta de métodos, sistemas, de caminhos seguros para a sua caminhada. As Musas não me visitam, sempre passam ao largo... E quando digo que não sou poeta, apesar de minhas investidas no campo do versejar, é porque não me atrai tanto exprimir a saudade ou a falta ou o amor ou a desolação ou o sentir o mundo como um incômodo. Atrai-me, antes da subjetividade lírica, agônica ou não, a ironia, de que não se encontra jejuno o seu poema “A Casa de Augusto”.
Atrai-me o espicaçar, a mordacidade, no limite, o escarnecer e a verrina, daí a minha incursão no campo do epigrama. Atrai-me mais a concisão que castiga e incomoda do que a concisão dos joguinhos vocabulares, muitos não passando de clichês, conforme o amigo sabe, pela sua visão de crítico, e sobre os quais muito conversamos, em diversas ocasiões.

Mas não estou aqui para falar de mim e, sim, deste diálogo inesperado que está acontecendo entre nós dois, meu amigo, cuja amizade já está beirando os 40 anos. Não me recordo que tenha acontecido algo parecido, nas tantas vezes em que nos encontramos, juntamente com outros amigos, e ficávamos nas intermináveis conversas a varar as madrugadas, continuadas, quase sempre, nos dias subsequentes.

Confesso-lhe, meu amigo, que me incomoda muito o fato de termos uma real celebridade em nosso meio, com todos os méritos, e que não tenhamos ainda despertado para a necessidade de contar para todos os que visitam João Pessoa, que aqui é a terra de Augusto dos Anjos, que a Duque de Caxias, então, Rua Direita, foi onde ele morou, em lugares diferentes, mas em toda a sua extensão – no início, no meio e no fim –, que, nessa rua, ele flanou, deu aulas, participou das rodas literárias e culturais do jornal A União, foi aluno e professor do Liceu Paraibano, e, por fim, nessa rua se casou, se levarmos em consideração que a Igreja da Conceição dos Militares, um antigo anexo do Palácio do Governo, foi o local onde ocorreu o seu casamento com Esther Fialho; nessa rua se encontra a Academia Paraibana de Letras, dita a Casa de Augusto dos Anjos, e que foi, efetivamente, a sua residência por um período. Eis, porque, com justiça, a rua deveria chamar-se Rua Augustos dos Anjos.

Sei muito bem, Hildeberto, que falou mais alto na sua alma, quando da conversa com Tarcísio Pereira, o seu tino de poeta. Tenho a pura convicção de que, quando a poesia nos fala, opera como um vórtice e somos todos engolidos por ela e seus descaminhos. O seu poema “A Casa de Augusto” termina por conceder uma casa a Augusto, quando não quer lhe dar casa alguma, mas, paradoxalmente, procurando entre os versos do poeta do Eu, retomados com precisa adequação, o verdadeiro lugar que lhe cabe. Eis a beleza da força criadora! E para poder fruir o seu poema, Hildeberto, é necessário que o leitor se revista de uma outra casa, revista-se do grande abrigo poético que o imortal livro de Augusto dos Anjos concede a todos quantos enveredam nos magnéticos caminhos de seus versos.

Finalizando, com a sua vênia, Poeta, publico, em primeira mão, o seu poema, que deverá constar também no meu já citado livro sobre Augusto dos Anjos e a Rua Direita.

No mais, um grande abraço, e obrigado pelo constante diálogo que a literatura nos permite mais do que os diálogos da vida cotidiana. Não queremos coisas diferentes, apesar de você querer para Augusto a mirífica casa da poesia, onde ele já mora, e eu queira a chã realidade de um endereço, para que todos possamos homenageá-lo como ele merece. Queremos a mesma coisa, pois sabemos que o grande poeta do Pau-d’Arco, na realidade, mora e sempre morou na “pátria da homogeneidade”, de onde todos viemos e para onde, um dia, todos voltaremos.

A casa de Augusto
Hildeberto Barbosa Filho
Por que procurar a casa de Augusto? Estaria essa casa no Beco do Carmo, na Rua Direita, no Beco Malagrida? Onde, quando, por que a casa de Augusto? O Pau d’Arco, Recife, a terra pobre de Cruz do Espírito Santo? Prefiro pensar que a casa de Augusto nunca existiu. (Ah! O abstrato das saudades!). Nunca existiu a casa de Augusto. Nem na capital, nem no Rio, nem em Leopoldina. Augusto não carece de casa. Os poetas não têm casa. Inútil procurar a casa de Augusto. Os poetas residem no ar rarefeito da biosfera. São sombras magras com pele de rinoceronte. Tivesse casa, Augusto, seria a Ponte Buarque de Macedo, o negro peito da ama Guilhermina, a lâmina minuciosa de uma metáfora apocalíptica. Casa por casa, por que não pensar nas volúpias da Ilha de Cipango, na solidão das lagartixas espiando as coisas mortas, no chocalho fatídico dos ossos, no verme que rói e arruína, nas viagens da monera, na cicatriz do quarto minguante, na poesia de tudo quanto é morto? Quem sabe, a casa de Augusto não transcende a vila de Sapé, a usina triste, o tamarindo, o corrupião sem sorte? Sua casa, se casa existe, se foi com as águas do rio Paraíba, vista das margens como um palácio paradoxal. Casa sem nenhuma arquitetura, maquete desarticulada, casa de sombras e de assombros. Casa cujo endereço se perde nos carvalhos da poesia. Casa fechada e obscura onde os fantasmas bebem o vinho dos versos mais perfeitos. Onde a dor reina, soberba e absurda, diante do nada. Onde a arte arde e explode seus signos malditos como a única forma de existir. A casa de Augusto está localizada na avenida de seus sonetos. Seu número é o mesmo da aritmética da morte. Casa inatingível, sem destinatário. Não importa a cana do engenho, não importa se Jesus viveu na Serra da Borborema. Não importa o milagre do finado Toca. Não importa o gemido da árvore na serra, o positivismo, o ébrio, o coveiro, a sibarita. A casa de Augusto é a casa do seu pai. Do pai. Por que não procurá-la naquele carro de glórias subindo aos céus, Elias no volante, aureolado?


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  1. Petrônio Souto2/9/23 10:05

    Parabéns, Milton, independente de qualquer coisa, o que move os que amam verdadeiramente João Pessoa, sobretudo os nascidos e criados na cidade, é descobrir onde se localiza o “Número cento e três. Rua Direita”, primeiro verso do poema “Noite de Um Visionário”, de Augusto dos Anjos. Queremos saber o local exato onde se manifestou o espírito criador do excelso poeta paraibano, além de “carimbar” a atual Duque de Caxias (antiga Rua Direita) como a rua em que morou Augusto durante sua estada na Capital. O resto é o resto. Vamos em frente.

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    1. Anônimo3/9/23 07:15

      Maravilha literária, histórica e geográfica!

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  2. Anônimo2/9/23 18:27

    Parabéns, Milton! Um augusto texto para o gigante Augusto!

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  3. Obrigado a todos pela leitura e comentários.

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