Sim, foi comigo mesmo que se deu o fato. Dolorido para mim, motivo de pilhérias para os amigos e quiçá de regozijo para inimigos se estes houver pela minha retaguarda.
Nunca fui afeito a determinados compromissos sociais. Funerais, por exemplo. E nem a seus desdobramentos. Sequer soube carpir entes queridos que partiram antes do combinado. Faz-me o que me reta de alguma polidez comparecer a esses ritos funéreos e o faço muito a contra gosto. Desta minha notória indisposição a tais obrigações, é que provavelmente tenha me faltado a sorte. Explico.
Funeral de um colega professor, que vitimado por um tumor cerebral, este meu confrade foi precocemente falar com Deus. Inevitável que foi, compareci a todas etapas do ritual. Vi, como disse Bandeira, “a enxangue máscara de cera” e como ainda diria ele, também pude ver “lágrimas nascidas menos da saudade do que do espanto da morte”. Assisti às orações e delas compartilhei todas as boas intenções com a alma do defunto. Acompanhei o lúgubre cortejo até sua última parada e lá me pus a ouvir as derradeiras homenagens. Foi então que se deu o fato.
Resolvi me afastar um pouco da pequena multidão. Não queria presenciar tão de perto os últimos procedimentos. Com a mulher a tiracolo atendia a um telefonema sem dar muita atenção à geografia do local e fui estacionar minha figura ao lado de outra cova. Esta, recém aberta, à espera de algum inquilino que provavelmente estava à caminho. Aí o desastre, a terra cedeu e fui parar dentro daquele buraco que sempre foi o último lugar que pretendia visitar.
Fratura na tíbia e aquela dor lancinante. Claro que me fiz aos berros promovendo um verdadeiro alvoroço, a ponto de deslocar o foco das atenções. Passei de um mero e inexpressivo espectador à protagonista daquelas exéquias. Pouco percebi sentimentos como compaixão, piedade, misericórdia e outros desse jaez. Vi, sim, aquela pequena multidão lacrimejante de poucos instantes atrás se desmanchar em gargalhadas e o funeral viu-se de súbito transformado numa ruidosa pantomima. Não fossem duas almas solidárias que me resgataram daquela cratera eu ficaria ali “ad eternum”.
Dali, fui condenado a uma insólita viagem que deu início quando fui atirado para o interior de uma Kombi. Não sabia que aquela pequena marinete era tão desconfortável e que o caminho até um pronto socorro de fraturas seria tão penoso. Da Kombi à mesa de radiografias, onde se constatou que a fratura exigia procedimento cirúrgico. Da mesa de radiografia de volta à Kombi e dali nova turnê até um hospital. Da Kombi para uma maca e da maca para uma cama. Teimo e não lembrar da dor que passei e dos uivos que soltei. Uma injeção, não sei lá do quê, aliviou-me o sofrimento. No dia seguinte já estava na mesa de cirurgia. Um atencioso esculápio relatou-me todo o processo, mostrou-me o parafuso que seria introduzido em minha perna e vi uma furadeira que me pareceu uma daquelas de marca conhecida, das que tenho em minha caixa de ferramentas.
Pouco depois me aparece o anestesista com aquela conversa para boi dormir. Olhei bem para a cara do sujeito. Identifiquei que havia sido meu aluno de cursinho pré-vestibular anos antes do ocorrido.
⏤ Olá professor. Tá lembrado de mim.
⏤ Estou sim, foi meu aluno. Lembro-me de você e de sua turma.
⏤ Nunca imaginei vê-lo aqui “teacher”. Isso vai para os anais da medicina. Isso é inédito.
⏤ Como assim, inédito? – resmunguei.
⏤ É sim. Já aconteceu de mandarmos um paciente para o cemitério, mas de lá para cá, o senhor é o primeiro.
⏤ Estou sim, foi meu aluno. Lembro-me de você e de sua turma.
⏤ Nunca imaginei vê-lo aqui “teacher”. Isso vai para os anais da medicina. Isso é inédito.
⏤ Como assim, inédito? – resmunguei.
⏤ É sim. Já aconteceu de mandarmos um paciente para o cemitério, mas de lá para cá, o senhor é o primeiro.
Meus leitores e minhas leitoras. Acho mesmo que não fui só o primeiro. Devo ter sido o único.