Ela foi a terceira pessoa a descer do ônibus das 19 horas, da Sopa, no dizer do pessoal do Interior, por volta de 1960. É termo alusivo...

Tanto engordam quanto matam

onibus lanchonete conto
Ela foi a terceira pessoa a descer do ônibus das 19 horas, da Sopa, no dizer do pessoal do Interior, por volta de 1960. É termo alusivo ao prato típico das refeições coincidentes com o horário daquelas idas e vindas. Sempre assim: jantar à mesa no santo recesso dos lares e, lá fora, sem falha, a buzina tocada pelo motorista Hilário, da ponta da praça.

Esperou o desembarque da mala e, tão logo a teve, saiu em busca da casa que a abrigaria. Recusou a ajuda de um rapazote e se foi,
ela mesma, a puxar aquele peso com uma mão e, com a outra, uma criança de cinco, ou seis anos.

Respondeu, quase inaudível, ao “boa noite” do delegado, apressando os passos, em seguida, como se desejasse fugir dali. Não deixou, porém, de ser notada. Era bela demais para escapar das vistas de todos os que, então, se punham nas janelas e calçadas, invariavelmente, à cata de novidades. Disso não escaparia mesmo se a natureza não a houvesse contemplado com aqueles olhos, aqueles lábios, aquele jeito de princesa. Partidas e chegadas de quem quer que fosse, branco ou preto, bonito ou feio, jamais passariam desapercebidas por aquele povo.

A bisbilhotice elevada à condição de esporte predileto ali rendia, há muito tempo, sermões indignados do Padre Manuel. Por falar nele, a missa do domingo teve os fiéis em número redobrado e com a atenção dividida entre a eucaristia e a moça. “Olhos azuis”, notou Pedrinho, cutucando Severino. Os dois responderam com suspiros à pergunta de outro amigo ao lado: “Viram que pernas?”.

Findo o culto, Dona Augusta, tia da recém-chegada, apresentou-a, e à menina, a um pequeno grupo de amigas. “Esta é Angélica com a filhinha”. Pensava em ter as duas consigo por algum tempo. Tia e sobrinha fizeram ouvidos de mercador quando alguém em volta delas perguntou pelo pai da criança. De pronto, desviaram o assunto.

O tempo se passava sem que diminuísse o interesse da vizinhança por Angélica, sua bela figura e seu marido incerto e não sabido. A moça, enquanto isso, mal se mostrava em ambientes públicos até que resolveu abrir um ponto de comércio no espaço vazio da garagem de Dona Augusta para quem, há três anos, faltavam o carro e, igualmente, o companheiro levado ao túmulo pelo segundo infarto.

Não houve a mínima relutância da dona da casa. Não se permitiria perder aquelas que o destino pusera sob seu teto a fim de livrá-la da solidão amarga e dolorosa. Sua viuvez não comovia os dois filhos tidos, um após outro, no terceiro e quarto anos do casamento. Diga-se que eles não se deram mal na vida. Casaram, tiveram os próprios filhos, mas viviam longe dali às voltas com seus empregos e suas famílias. Assim, pouco a visitavam.

Angélica teve tudo muito bem providenciado: o forno, as vasilhas, o refrigerador, as batedeiras, as prateleiras, o balcão, as luzes e os estoques de farinha, açúcar, manteiga, ovos, frutas e essências diversas necessárias à produção das tortas e bolos jamais imaginados por aquela gente. Conforme fosse progredindo, reembolsaria a tia.

E assim foi feito. Aquelas mãos de fada, a precisão das misturas, o talento espantoso para a invenção de sabores fariam, gradualmente, a boa fama de receitas únicas, inigualáveis, indispensáveis. A freguesia ampliava-se com preferências
e encomendas individuais. Não mais faltariam o bolo de limão ao juiz, o de coco ao padre, o de chocolate à família do tabelião, o de abacaxi à do promotor nem o de maracujá ao pessoal do prefeito, todos fofinhos como nuvens.

A moça havia arrebatado os corações (e as tripas) dos figurões municipais, gente de máxima autoridade. Destes e de suas esposas e rebentos. O delegado servia-se, ali mesmo, no balcão, a exemplo do grupo de solteiros não menos ansiosos por fatias e sorrisos.

Angélica possuía em beleza o que tinha em recato, as duas coisas do mesmo tamanho e consistência. Ninguém, ali, nada receberia dela além dos bolos e tortas assados à perfeição, prometera a si mesma. Mas os anjos lhe trouxeram Miguel, o filho regresso do Rio de Janeiro, com sotaque charmoso, de quem o delegado se fez acompanhar até aquele balcão.

O diabo, bem depois disso, lhe trouxe o marido violento. E tudo se esclareceu. A moça havia procurado a tia ao cabo de uma viagem de 600 quilômetros em fuga dos insultos e das surras tomadas em Sergipe, onde vivia com o brutamontes e a filha que pariu. Dia sim, e outro também, pedia aos céus para não ser por ele reencontrada.

Miguel impediu que ela, mais uma vez, desaparecesse no mundo. E muito apanhou do sujeito enciumado. O filho atirado ao chão e os gritos e ameaças à porta de Dona Augusta, já trancada a sete chaves e à beira de um ataque cardíaco, atraíram as atenções de um delegado com fogo nas ventas. E não eram menores a indignação do padre,
a do juiz e a do promotor de justiça.

Caia o pano. A Sopa, três dias depois da confusão com a bela Angélica, sua tia e seu amado, partiu de volta à Capital com um sujeito cabisbaixo, de fala mansa e andar arrastado. Naquele corpo de 35 anos sobrevivia um velho. Contaram-me que tossia e, às vezes, cuspia sangue.

Já disse e repito que toda cidadezinha tem seu bêbedo famoso pelos conhecimentos expressos nos campos da psicologia, da filosofia, ou por suas sentenças e convicções bem firmes acerca de todos e de tudo.

Pois bem, meus amigos e minhas amigas, não houve quem tirasse da cabeça de Júlio, o pinguço local, a certeza de que bolos feitos por fadas de olhos azuis e cabelos alourados podem vir da premeditação e conter o fermento da vingança. Ele acreditava, piamente, em que, de um modo ou de outro, mais cedo ou mais tarde, coisas assim temperadas tanto engordam quanto matam.

Um maluco, o tal Júlio. O que então importava era saber da paz e tranquilidade daquele povo, da felicidade de Miguel e da alegria do delegado a quem o filho daria o primeiro neto. Bom mesmo era perceber a satisfação dos maiorais da cidade enfeitiçados, todos eles, pela moça e seus quitutes. Eu disse “enfeitiçados”? Não levem isso em conta. É mera força de expressão. Não é não?

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também